A Venezuela precisa ser debatida, mas com menos ódio e mais seriedade e profundidade

Esses primeiros tempos de redes digitais criaram uma casta de intelectuais de Facebook que é altamente toxica. Uma turma que fala sobre tudo e que agora se tornou especialista em Venezuela

Escrito en BLOGS el
Em 1998, Chávez ganhava a eleição na Venezuela com 56% dos votos derrotando a política do Pacto do Punto Fijo, uma estranha aliança entre dois partidos que há 40 anos se revezavam no poder, a Aliança Democrática (AD) e a Copei. Quem ganhava, mexia em quase nada das estruturas entreguistas dos país. E em boa parte dos casos, mantinha inclusive parte dos ministros e servidores de confiança nos cargos. Naquele tempo era comum se dizer que durante o processo das ditaduras militares no Continente, a Venezuela havia escapado. Era um fato, mas um fato que teria de ser entendido em seu contexto. A Venezuela não precisou de militares para fazer o serviço que o imperialismo americano desejava (você pode achar que não, mas imperialismo existe, como se pode comprovar de tempos em tempos com os documentos secretos desclassificados dos arquivos do governo dos EUA). E a elite do país mesmo montada num barril de petróleo, nunca teve o interesse de sequer industrializá-lo. Quando Chávez assumiu a Venezuela, como este blogueiro pode conferir, sequer se produzia caixa de fósforos por lá. Chávez gostava de contar em entrevistas, algumas com a presença do blogueiro, que percebeu que as coisas iriam "dar ruim" pra ele quando na sua primeira ida à Venevision, a TV do Roberto Marinho de lá, Gustavo Cisneros, recebeu um bilhete com a indicação de alguns "notáveis" venezuelanos para serem seus ministros. E que ao olhar, não identificou nenhum com quem pudesse trabalhar. Dali em diante, passou a ser chantageado e ameaçado dia a dia. Até sofrer uma brutal tentativa de golpe em abril de 2002. O blogueiro esteve por lá naquela época e depois voltou algumas vezes para escrever sua dissertação de mestrado e um livro cujo título é: Midiatico Poder, o Caso Venezuela e a Guerrilha Informativa. Há muita gente que partiu pra Caracas e arredores naqueles dias e que conheceu o país mais profundamente do que o blogueiro. Há gente que só lê sobre a Venezuela e que também conhece o país a fundo. Nem sempre a experiência de vida é mais importante do que a do conhecimento dos livros. E por isso é sempre bom respeitar as duas. Mas, por outro lado, há gente que não conhece nada e que se arrisca no tema e que por isso, com todo carinho, às vezes passa muita vergonha. Vergonha não significa não ganhar likes. Na lógica das redes digitais, Bolsonaro é mito. E Trump presidente dos EUA com uma campanha apostando todos os seus centavos na guerra de redes. E no lugar comum. E esses primeiros tempos de redes digitais criaram uma casta de intelectuais de Facebook que é pretensiosa, raivosa e altamente toxica. E que é especialista em lugares comuns. Alguns desses intelectuais têm, inclusive, assentos em boas universidades. E por isso se acham portadores da palavra final sobre qualquer coisa. De Belo Monte, a poesia russa do século passado, passando por psicanálise, direito, vida dos outros, feminismo, racismo, sexo tântrico, comunicação e, evidentemente, filosofia. Porque quem não arrisca em filosofia não petisca tantos likes. É um grupo que cada vez mais odeia o atual governo da Venezuela e não aceita sequer debater o tema. Porque quem pondera qualquer coisa a respeito da situação vivida no país vizinho que não seja dizer amém ao que vociferam é tão ditador, autoritário e canalha quanto, segundo eles, o assassino do Maduro. Infelizmente este grupo está convencendo muita gente séria de que de fato Maduro é o capeta que fala espanhol. É a grande ameaça ao mundo e a América Latina. Como foi Fidel em outros tempos. Dito isso, passo para a parte final deste textão. A Venezuela perdeu sim muitos dos elementos originais dos primeiros anos do governo Chávez. E passou a ter em seu comando gente muito pior do que naquele começo de século, quando o país fervia em construções alternativas. Hoje, uma burocracia corrupta de fato vem ganhando espaço nos estamentos de poder do Estado. E também o governo endureceu a mão com os adversários. Mas a maior parte da oposição na Venezuela continua sendo liderada por bandidos. E assassinos. Isso significa dizer que é bobagem imaginar que se esse grupo voltar ao poder ele liderará uma reforma democrática no país. Pelo contrário, vai jogá-lo de volta no colo dos EUA, com Trump e tudo, e partir pra cima de lideranças populares, tanto prendendo-as quanto matando-as. É assim que funciona na história. Foi assim em poucos dias de golpe por lá. Foi assim por muitos e muitos anos na vizinha Colômbia, país sobre o qual quase ninguém falava nada nesses anos todos, incluindo a Acadêmia do Facebook. A situação na Venezuela é de fato complexa. Mas é possível e necessário tentar entendê-la por fora das caixinhas. Esse parece ser o desafio da esquerda. Um desafio que exige tranquilidade e respeito pelo argumento alheio. E que deve se dar na base do diálogo e não do grito. Até porque, amigos, o grito não é só o recurso dos violentos, mas também dos idiotas.