Bolsonaro na ONU, grande mídia e as queimadas: esquerdas devem conhecer Ernst Bloch

Leia no blog Cinegnose: A esquerda precisa urgentemente conhecer Ernst Bloch: como atuar nesse espaço assíncrono do imaginário?

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O filósofo alemão Ernst Bloch foi uma das influências de Theodor Adorno e da chamada “Escola de Frankfurt”: foi o primeiro pensador marxista a considerar o imaginário nos meios técnicos (rádio e cinema) explorados pela propaganda nazi-fascista no século passado. Sua “Teoria da Assincronia” mostrou como o imaginário social foi politizado pela propaganda política: os tempos latentes, arcaicos e idílicos se mantêm em camadas mais antigas nas mentes das pessoas, mantendo a contradição em relação às modernizações tecnológicas e econômicas. E a propaganda atuou nesse tempo assíncrono do imaginário. Tanto o discurso de Bolsonaro na ONU quanto a cobertura da grande mídia das queimadas no Pantanal e Amazônia exploram esse imaginário assíncrono do “ódio ao presente”, o material explosivo das bombas semióticas da extrema-direita: religião, nacionalismo etc. A esquerda precisa urgentemente conhecer Ernst Bloch: como atuar nesse espaço assíncrono do imaginário? 

“O Capital” de Karl Marx foi uma obra incompleta. Depois dos “Manuscrito Econômicos e Filosóficos” da juventude, Marx dedicou-se o resto da sua vida em escrever uma crítica da economia política. E “O Capital” foi sua obra máxima, porém inconclusa devido à sua morte – a parte tanto dedicada às classes sociais quanto à cultura não puderam ser realizadas.

As consequências para a práxis política da esquerda no século XX foram catastróficas. Por exemplo, diante do impasse de Lênin pós-revolução (qual tipo de cultura deveria apoiar o Estado Socialista?) entre as bases populares revolucionárias do “Polerkult” de Alexander Bogdanov ou a introdução de elementos da “cultura burguesa” à massa inculta, optou pela segunda estratégia cultural.

 Na década de 1920 George Lukács tentou preencher essa lacuna no pensamento da esquerda com o livro “História e Consciência de Classes” onde apontou o problema da cultura nas grandes discussões de economia e política.

Porém, foi o filósofo alemão Ernst Bloch (1885 – 1977) que avançou um pouco mais além do tema da cultura: buscou a importância do imaginário na emancipação política das classes trabalhadoras – a importância da “assincronia” nas estratégias políticas e o uso dos meios técnicos na propaganda política, principalmente nazi-fascista.

 Bloch vai propor o tema da assincronia na história do imaginário alemão, que ainda continua sendo o paradigma das estratégias políticas atuais. Um século depois, as estratégias da chamada “direita-alternativa” (“alt-right”) ainda atuam nessa concepção assíncrona do tempo do imaginário nas sociedades.

Em 1935 Ernst Bloch publicou “Erbschaft dieser Zeist” (“Herança desta Época”) onde tentava compreender a ascensão do nazi-fascismo à luz de elementos imaginários arcaicos. Nos primeiros decênios do século XX na Alemanha coexistiam o desenvolvimento tecnológico e econômico tardios do capitalismo com “os tempos latentes, míticos, arcaicos ou utópicos que se podem transmitir de uma classe a outra”. 

O Tempo do Imaginário

Na “teoria da assincronia”, o tempo histórico blochiano não é linear – numa sociedade há uma multiplicidade de diferentes espaço-temporais numa mesma contemporaneidade cronológica.

Ernst Bloch (1885-1977)

Em outros termos: os tempos mais remotos continuam a pulsar em camadas mais antigas do imaginário social e as mentes das pessoas mantêm-se ainda sensivelmente atrasadas em relação às modernizações tecnológicas e econômicas. O que resulta na identificação com discursos políticos de outras épocas, apoiando estratégias que se utilizam de temas e visões do passado.

Com isso, Bloch queria dizer que as pessoas reagem de forma totalmente assíncrona, porque nelas atuam impulsos de tempos pré-capitalistas. Por exemplo, naquele momento na Alemanha, o movimento nazista explorava largamente a assincronia: evocava fantasias idílicas e arcaicas associadas ao sangue e a terra, reinventado costumes antigos em plena propaganda política que usava os meios tecnológicos mais sofisticados da época: o rádio e o cinema, a indústria cultural e os incipientes meios de comunicação de massas.

Nessa “politização do imaginário”, Bloch identificava dois tipos de assincronias: a objetiva e a subjetiva. Na primeira forma, existiria um “ódio reprimido” ao se recusar o presente – a modernidade e as mudanças sociais, tecnológicas e as decorrentes mudanças de hábitos e costumes; e na segunda forma, a existência de elementos do passado não trabalhados ou superados – elementos utópicos que viabilizariam uma ação política progressista que liberariam esse “futuro do passado”.

É impressionante como, um século depois, testemunhamos um contexto análogo àqueles das primeiras décadas do século XX: enquanto a esquerda ignora essa política do imaginário (limitando-se apenas a denunciar as mentiras da propaganda da extrema-direita), a chamada direita-alternativa politiza ativamente essa assincronia objetiva descrita por Bloch. 

Há uma flagrante repetição do período entre guerras do século XX com a conjuntura atual: se lá tínhamos o rádio e o cinema, hoje são as mídias sociais e as tecnologias digitais. Meios tecnológicos avançados que paradoxalmente manipulam esse tempo social assíncrono. 

O exemplo do discurso de Bolsonaro na Assembleia-Geral da ONU é uma evidência de como a estratégia de propaganda da extrema-direita não só ocupa como reforça e amplia essa assincronia do imaginário. Enquanto as oposições apenas se limitaram a denunciar as mentiras do discurso, enquanto a grande mídia, como de hábito, apenas “passou o pano” ao apontar “imprecisões e equívocos” na fala do mandatário.

Se o auxílio emergencial é de mil dólares ou os incêndios no Pantanal e Amazônia são obras de “indígenas e caboclos” é o que menos importa no discurso em seu efeito ideológico.

O discurso foi muito mais uma peça de propaganda política para o respeitável público interno, assim como o fez Donald Trump. Tanto Bolsonaro quanto Trump não falaram como líderes de nações diante da comunidade internacional, mas como políticos em campanha colocando em ação sofisticadas ferramentas semióticas.

A questão é que não foram discursos apenas voltados para seus “núcleos duros” (os convertidos), mas para as “maiorias silenciosas” (conceito tomado no sentido dado por Jean Baudrillard - clique aqui) e seu imaginário assíncrono cujo hiato entre passado e presente é ainda mais alargado pela máquina semiótica da grande mídia. Já explicaremos esse ponto adiante.

A maioria silenciosa vive no imaginário assíncrono

Repare, caro leitor, como o discurso de Bolsonaro “para a ONU” é dominado por um imaginário arcaico, para começar a própria composição tosca e cafona dos elementos do enquadramento do vídeo – como se emulasse a imagerie aquelas fotos tiradas de crianças, com seus cabelos fixados em brilhantina, no primário, nos anos 1960-70 – com o mapa do Brasil e bandeira nacional ao fundo; fotos emblemáticas do auge da ditadura militar brasileira – a qual nos referimos como “canastrice na política” - sobre isso, clique aqui.

Em termos retóricos, o discurso foi dominado por expressões arcaicas e de um messianismo religioso: “língua-mãe”, “o mundo necessita da Verdade”, “a produção rural, o homem do campo produziu alimento para o mundo”, “patriótico”, “impatriótico”, “um país cristão e conservador que tem a família a sua base”. Pátria, Campo, Mãe, Família, Conservador, Cristão é o imaginário muito mais tóxico do que as mentiras contadas pelo mandatário. Expressões que eram também, há um século, o leitmotiv da propaganda nazi-fascista. Mas que paradoxalmente convive confortavelmente no discurso do imaginário tecnológico da “indústria 4.0” e “nanotecnologia”.

A estratégia mais importante da propaganda da extrema-direita não é tanto a mentira, mas a politização do imaginário com o seguinte modus perandi: tensionamento e ampliação da assincronia entre presente e passado. De tal forma que a recusa ao presente (“assincronia objetiva”) alcance o ódio e o ressentimento.

Nesse sentido compreende-se o porquê da grande mídia colocar em sua agenda a visibilidade de todos os movimentos identitários (gênero, raça etc.). Aparentemente, a mídia corporativa ao transformar o identitarismo em pautas de telejornais, telenovelas, entretenimento e espetáculos, parece se colocar na oposição à extrema-direita e ao próprio governo Bolsonaro. Ledo engano.

Por mais justa que seja a agenda de luta desses movimentos, eles apenas aprofundam o movimento assíncrono tão buscado pela propaganda política da direita-alternativa: criam a polarização necessária para que o presente entre em choque com valores arcaicos do imaginário. É tudo que a extrema-direita quer para colonizar o imaginário da maioria silenciosa – os não-convertidos, cuja polarização cria a energia que converte a recusa aos “novos constumes” (modernos, cosmopolitas, progressistas etc.) em ódio e ressentimento. O histórico combustível do fascismo.

O Jornalismo metonímico e as queimadas

Além de passar o pano para tentar dar brilho naquilo que é opaco, a grande mídia simula estar na oposição, como se estivesse numa cruzada pela “ciência” contra o obscurantismo. Diante da tragédia ambiental dos incêndios no Pantanal e Amazônia, apresenta imagens de satélites, entrevista cientistas, técnicos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, repercute vídeos e imagens de fotógrafos de renome como Araquém Alcântara - como se estivesse na linha de frente contra as “fake news” dos negacionistas que intoxicam as redes sociais.

Mas sutilmente pratica o seu recorrente jornalismo metonímico, marota estratégia semiótica desde as temporadas das bombas semióticas que prepararam o golpe de 2016 – sobre isso, leia o trepidante livro desse humilde blogueiro “Bombas Semióticas na Guerra Híbrida Brasileira (2013-2016) – Por que Aquilo Deu Nisso?” – clique aqui.

Tipo de retórica jornalística que consiste numa “contaminação metonímica” entre signos de natureza diversa (texto, imagem etc.) seguindo a fórmula: 1 + 1 = 3 - isto é, uma notícia que contamina outra notícia totalmente diversa pode produzir uma outra terceira notícia, ideologicamente intencional. 

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