Cartografias e Topografias da Mente: de "Vanilla Sky" à "Alice" de Tim Burton

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Um conjunto de filmes desse início de século que vai de "Vanilla Sky" até a recente versão de Tim Burton para "Alice no País das Maravilhas" demonstra que o cinema atual reflete uma nova agenda tecnocientífica: psicocartografias e psicotopografias. A mobilização das neurociências e ciências cognitivas para o mapeamento da mente e da consciência. Cartografias de mundos imaginários não é uma novidade na história da cultura. Porém, na atualidade, essas alegorias têm uma finalidade mais prática: controle e Engenharia Social.

O que há em comum entre os filmes “Vanilla Sky” (2001), “Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças” (2004), “Sonhando Acordado” (The Good Night, 2007), “Ciência dos Sonhos” (La Sceince Dês Revês, 2006), “Alice no País das Maravilhas” (2010) de Tim Burton, “A Origem” (Inception, 2010) e a série televisiva “O Prisioneiro” (The Prisoner, 2009)? As últimas discussões apresentadas nesse blog sobre esse conjunto de filmes parece apontar para duas tendências do filme gnóstico nesse início de novo século:

Primeiro, o fim do modelo do gnosticismo pop que marcou o final do século passado em filmes como Matrix e Show de Truman: o protagonista prisioneiro em uma realidade que, na verdade, é uma contrafação tecnológica, um mundo fabricado, virtual. É a clássica narrativa gnóstica de um mundo criado por um Demiurgo (a tecnologia) para aprisionar seres humanos. Vemos um explícito e dramático confronto do humano contra uma divindade enlouquecida pelo poder espiritual e tecnológico. Nesse início de novo século, a narrativa gnóstica (Queda, aprisionamento, redenção) é trazida para o interior do protagonista: a procura de um verdadeiro Eu oculto aprisionado ou perdido pelo esquecimento, dentro de um mundo paralelo onírico ou por limitações que impedem o autoconhecimento.

Segundo, todos esses filmes parecem empreender um mapeamento, uma cartografia e uma topografia do mundo mental. Uma verdadeira geografia alegórica dos processos mentais (sonhos, devaneios, pensamentos, emoções etc.). Por exemplo, em Vanilla Sky vemos, próximo ao final do filme, a revelação de que o protagonista David Aymes vive em um “sonho lúcido” criado a partir de um mapeamento das referências afetivas e emocionais feitas dentro do repertório imagético dele: filmes preferidos, musicas, bandas de rock e fragmentos diversos da cultura pop. O “sonho lúcido” do protagonista seria como um trajeto sentimental através das suas memórias.

Na série O Prisioneiro uma verdadeira cartografia da mente coletiva das pessoas que necessitam ser “consertadas” através de uma radical técnica neurocientífica: transportar o Eu para uma realidade paralela consensual (“A Vila”). Todos levam uma vida dupla: enquanto seus “Eus” conscientes habitam o mundo real, simultaneamente seus “eus” inconscientes vivem o cotidiano bucólico da Vila. Dessa forma seus “eus” inconscientes são “consertados” na Vila através de uma agenda de valores “positivos” levada a cabo pelo líder da cidade.

Já no filme “A Origem”, temos uma topografia elaborada da geografia mental: diversos níveis dos sonhos sobrepõem-se, cada um com seu fuso horário distinto, produzindo uma arquitetura semelhante a um hipertexto ou a narrativa de um game de computador com diversos níveis como etapas.

Essa tendência recente observada nos filmes gnósticos parece ser o reflexo de uma agenda tecnocientífica desse início de século: a agenda tecnognóstica, o esforço multidisciplinar envolvendo as neurociências e ciências cognitivas para desvendar um dos últimos grandes mistérios da ciência: o funcionamento da mente humana e a natureza da consciência.
No final do século passado, o filme gnóstico refletia, de forma crítica, a ascensão das noções de ciberespaço, realidade virtual e mundos simulados por meio de modelos computacionais, Hoje o projeto tecnognóstico é outro: a procura de uma simulação, um modelo computacional, uma interface gráfica que permita não só compreender a dinâmica dos processos mentais e da consciência, mas, principalmente, manipulá-la e controlá-la.

Onde está a “alma”?

Se o filósofo Descartes, no século XVII, formulava essa pergunta (epígrafe que abre o filme “Almas à Venda”, filme que tematiza criticamente essa agenda tecnognóstica - veja links abaixo), hoje a busca pela resposta a essa pergunta (a “alma” é substituída pela palavra “consciência”) é levada às últimas consequências ao se procurar elaborar uma verdadeira psicocartografia ou um psicotopografia.

Mapas, cartografias e topografias de terras imaginárias não são novidades na história da cultura. Mapas como “ThePilgrim’s Progress” ou “Map of the Various Paths of Life” (veja figuras ao lado - clique nelas para ampliá-las) do século XIX são alegorias de eventos simbólicos, metafísicos como as provações da fé de um peregrino ou os caminhos da vida do nascimento até a morte. Esses estranhos mapas antigos procuravam servir de guias pessoais para racionalizar e ajudar a entender fenômenos psicológicos e religiosos. Podem ser considerados os precursores de um projeto tecnocientífico iniciado pelo racionalismo de Descartes e que, na atualidade, desabrocha com as tecnologias computacionais.

O livro” Alice no País das Maravilhas” de Lewis Carroll pode ser considerado um exemplo desse espírito do tempo do século XIX onde a elaboração de cartografias de países imaginários pretendia fazer uma alegoria sobre o real. Assim como na alegoria da caverna de Platão (o mundo como um simulacro das formas perfeitas do mundo das Idéias), Carroll vai criar a alegoria de “Wonderland” para buscar as origens metafísicas do simulacro da realidade. A vida real de Alice na Inglaterra nada mais seria do que uma cópia distorcida ou empobrecida de Wonderland. Nessa terra imaginária os paradoxos, ironias, non sense e absurdos seriam mais explícitos do que no mundo real onde essa natureza última é escondida ou distorcida pelo racionalismo.

Já na Alice de Tim Burton temos um novo tipo de alegoria, a tecnognóstica: Alice cruza o território de uma Wonderland que já não é mais a alegoria de Carroll. O trajeto feito por Alice é através de um mapa mental do autoconhecimento, a busca da verdadeira Alice e não mais uma reflexão metafísica da realidade. Seu interesse é instrumental: autoconhecimento e motivação para assumir os negócios do pai e ser uma corajosa empreendedora.

A Wonderland de Tim Burton é o reflexo dessa agenda tecnognóstica: criar cartografias, modelos ou interfaces que visualizem os processos mentais como uma geografia da mente. Cada região (a ante-sala de entrada para Wonderland, o castelo da rainha vermelha, as montanhas que a envolve, o castelo da rainha branca localizado numa planície, o gigantesco tabuleiro de xadrez à beira do mar onde é realizada a batalha final etc.) é uma alegoria de processos mentais, psíquicos e cognitivos.

Por exemplo, o monstro Jaberwocky tem sua cabeça decepada no alto de um palácio em ruínas à beira do mar. É como se Alice deletasse seus medos, restrições e fantasmas que a impedem de ser a verdadeira Alice. É o anseio de todas as tecnologias do espírito (auto-ajuda, técnicas motivacionais): eliminar as limitações que impedem o desenvolvimento das potencialidades do Eu. Se Freud queria compreender os símbolos, com as Alegorias é mais fácil: cortam-se as cabeças!

Wonderland não é mais um reino subterrâneo como imaginado por Carroll. Agora são memórias. Memórias que necessitam ser mapeadas, cartografadas, para que consigamos localizar as regiões onde habitam as memórias “ruins” (áreas trevosas, pântanos, palácios em ruínas – obras inacabadas que viraram entulhos – meandros encravados em montanhas de difícil acesso etc.), não para compreendê-las, mas para apagá-las, como no filme “Brilho Eterno...” onde a partir de uma interface gráfica computadorizada do cérebro, permitia rastrear as memórias ruins que deveriam ser deletadas para tornar os clientes mais leves, assertivos, sem culpas ou indecisões que atrapalhem o cumprimento das metas do Eu.

O Mapa de “O Prisioneiro”

Na série televisiva “O Prisioneiro” (The Prisoner, 2009), remake do canal norte-americano AMC da série britânica Cult dos anos 60, temos a emblemática criação de um mapa interativo da “Vila”. Resultado de uma tecnologia de controle social (“Social Engeneering”) levado a cabo pela empresa Summakor, “A Vila” é mais um desses lugares imaginários, uma cartografia da vida mental feita para “consertar pessoas quebradas”. A partir da indução por drogas pesadas, a Vila é a construção de uma “alucinação consensual” (definição que o escritor William Gibson deu para o ciberespaço) para onde são enviados os egos de pessoas disfuncionais à ordem social (paranoicas, violentas, deprimidas etc.). Lá vivem numa vila em tons pastéis dentro de uma rotina idílica, simples e inocente.

Um dos produtos dessa série é um mapa interativo no site da emissora AMC onde podemos fazer uma visita às diversas instituições e bairros da Vila (zonas proibidas e virtuosas). Uma cartografia irônica da mente dos personagens da série, mas que, no fundo, é o reflexo dessa agenda tecnocientífica contemporânea (clique aqui e visite o mapa).
“Existem mapas sobre qualquer lugar: cromossomos, galáxias, o cérebro, a célula, os espaços entre os átomos, das fendas na dupla hélice, das bordas do tempo. Se os mapas são convites para viagens, esses novos mapas inspiram jornadas completamente diferentes, de uma forma associativa. Ao mesmo tempo, permanecem conectados com a nossa geografia tradicional, tornando-se guias orientadores de processos. Eles fornecem para nós trilhas mais interiores, filosóficas e imaginativas”. (HALL, Stephen. "I, Mercator", IN: HARMON, Catherine. You Are Here: Personal Geographies and Other Maps of the Imagination. New York: Princeton Architectural Press, 2004, p. 17.)

Como alegorias, os mapas possuem essa potencialidade neoplatônica ou gnóstica de empreender uma viagem filosófica ou imaginária, ao tomarmos a realidade de maneira invertida, como fez Lewis Carroll nas terras de Wonderland. Mas o projeto tecnognóstico é muito mais prático e instrumental: fazer o mapa coincidir com o território, ser um guia de processos, um painel de controles como ícones em um desktop. Ao clicá-los poderemos controlar processos mentais, psíquicos e cognitivos. No final, um projeto tecnocientífico de controle, management, engenharia social e psíquica.

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