A condenação de Lula e a midiática "crítica nem-nem"

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Após a sentença de condenação de Lula pelo juiz Sérgio Moro, a TV mostrou imagens de comemorações em frente à Vara de Curitiba por manifestantes em suas indefectíveis camisas amarelas da CBF. Ao mesmo tempo, tomadas da Avenida Paulista com mais manifestantes, agora de camisetas vermelhas, faixas e punhos erguidos em protesto contra a condenação de Lula. Ato contínuo, a grande mídia expõe os rostos dos magistrados que julgarão o recurso à condenação e uma canastríssima entrevista (com signos cenograficamente saturados) do presidente do TRF-4 que poderá finalmente impedir a candidatura presidencial do líder petista. Qual a relação entre esse ensaio de volta da polarização “coxinhas X mortadelas” e o jogo midiático de sedução/chantagem com magistrados? O velho semiólogo Roland Barthes responderia: a mitologia da “crítica nem-nem”. Ou simplesmente “ninismo” -  mecanismo retórico de dupla exclusão na qual se reduz a realidade a uma polaridade simples, equilibrando um com o outro, de modo a rejeitar os dois. “Nem” um, “nem” o outro - apenas o “bom-senso”, mito burguês na qual se baseia o moderno liberalismo: a Justiça como mecanismo de pesagem que foge de qualquer embate ideológico.
Bastou o ex-presidente Lula ser condenado pelo juiz Sérgio Moro da Vara Federal de Curitiba para imediatamente a Globo News mostrar manifestantes contra e favor: alguns reunidos diante da Vara de Curitiba com as indefectíveis camisetas amarelas da CBF empunhando “pixulecos” e, diante do MASP na Avenida Paulista em São Paulo, imagens  cores vermelhas dominantes, balões da CUT e punhos fechados em apoio a Lula.
Mais tarde os telejornais repercutiram as comemorações e protestos. Não bem da forma como pretendiam. Afinal, Moro não teve coragem de colocar Lula na cadeia, frustrando a expectativa da mídia corporativa que preferiu continuar dando mais espaço ao cai-não-cai do desinterino Michel Temer.
Porém, do ponto de vista da guerrilha semiótica de retórica e propaganda, iniciado em 2013 com as “jornadas de junho”, o ato final da sentença do juiz Moro foi perfeito. Com timing, sincronismo ou, simplesmente, escárnio mesmo, a condenação de um líder trabalhista ocorreu no dia seguinte à aprovação da reforma trabalhista no Senado. 
E a dosimetria da sentença de Moro dá no que pensar: por que NOVE anos e meio de prisão? Por que não dez ou oito? Será uma irônica alusão à condenação do “nove dedos” como pejorativamente alguns se referem a Lula?
As imagens de protestos e apoio trouxeram mais uma vez à tona a polarização política que tanto marcou os confrontos em torno do impeachment da presidenta Dilma: coxinhas versus mortadelas, paneleiros versus esquerda caviar. Ou simplesmente Fla X Flu político.

 
De um lado, os “coxinhas” ostentando signos do bon vivant: taças com champanhe erguidas, pizzas recheadas de coxinhas e memes nas redes sociais com fotos de aperitivos e coquetéis ; e do outro, os “mortadelas” com os tradicionais signos da esquerda: bandeiras vermelhas, megafones, faixas e punhos erguidos. 

O magistrado canastrão

Ato contínuo, a máquina retórica de destruição da Globo volta seus canhões para o TRF-4 (Tribunal Regional da 4a. Região - Sul), instância  que julgará o recurso dos advogados de Lula. Agora, sob a forma de intimidação. Seguido pelo restante da grande mídia, o Jornal Nacional dedicou grande parte da sua edição do dia 13 de julho para expor os rostos e os nomes dos desembargadores. Algo assim como os cartazes de “Procurados” dos velhos filmes de western.
E uma entrevista com o presidente do TRF-4, Carlos Eduardo Thompson, com todos os signos saturados da canastrice televisual – com a câmera enquadrando ao fundo a bandeira nacional e um quadro em aquarela de um respeitável juiz togado, um martelo de juiz pousado sobre um grosso livro, cabelo emplastrado de brilhantina, uma calma estudada e sobrancelhas levantadas em soberba por posar confortavelmente em uma grande poltrona ao lado de uma estátua de bronze em clássica pose de saudação e Poder, tudo em rede nacional.
A canastrice: saturação de signos em um enquadramento cenografado
Signos saturados que conotam moderação, bom-senso, juízo, discernimento, propriedade. Mas, ao mesmo tempo, gestual com dedo em riste como que apontando para o futuro (assim como a estátua de bronze), dando uma mensagem também de força e dureza. Um enquadramento de câmera e composição de objetos de cena tão canastríssimos que parece visivelmente roteirizado, cenografado e com marcações de cena. 
Na Semiótica qualquer enunciado com tanta sobre-codificação (muitos repetição de signos  para construir uma única significação) denota intencionalidade por trás da conotação. 
Temos, portanto, em rede nacional a construção da mitologia do “bom-senso”, uma construção semiótica que legitima toda a atual judicialização da Política na qual juízes e procuradores se tornam os maiores protagonistas dos destinos políticos e econômico do País.

Barthes e a “crítica nem-nem”

Qual a relação entre essa promessa de revival da polarização coxinhas versus mortadelas e essa caprichada construção semiótica da mitologia em torno de um juiz?
O semiólogo Roland Barthes (1915-1980) responderia: a construção anterior de uma outra mitologia retórica midiática: a “crítica nem-nem” ou, simplesmente, “ninismo”.

 
 Em seu célebre livro Mitologias de 1957 o pesquisador francês empreende uma verdadeira engenharia reversa da retórica dos meios de comunicação de massa, cristalizada no que chamou de “mitologias”- forma de fala que não nega uma realidade, mas a torna inocente, despolitizada, ao esconder as conotações (as saturações ou canastrice das significações) dando-lhes um significado natural, eterno, imobilizando o mundo ao retirar dele a História e a contingência.
A crítica nem-nem decorre de um mecanismo de dupla exclusão – reduz a realidade histórica a uma polaridade simples, quantifica o qualitativo em uma dualidade e equilibra um com o outro, de modo a rejeitar os dois. 
Segundo Barthes, é uma figura estabelecida sobre um antigo mito burguês (o do “bom-senso”) para criar um mito no qual se baseia a forma moderna de liberalismo: a Justiça como uma operação de pesagem. E a balança só pode confrontar o mesmo com o mesmo. De uma maneira mágica, foge-se de uma realidade intolerável (porque múltipla, contingencial, histórica), reduzindo-a a dois contrários para depois serem pesados e rejeitados.
A forma retórica extrema dessa crítica nem-nem é a teratopolítica: estratégia de criação de inimigos monstruosos (morfologicamente disforme ou simulacro humano) na polarização política – sobre esse conceito clique aqui.
Mas a grande mídia deixa essa teratopolitização para os conflitos diretos entre os coxinhas e mortadelas nas ruas e redes sociais. Afinal, seus telejornais precisam usar ferramenta semióticas mais sutis, como o “ninismo”.
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