Feitiço do Tempo paralisa ciclovias de São Paulo

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Não existe terceiro turno. Estamos todos presos no dia 26 de outubro de 2014, em uma cilada do tempo que nos condena a repetir o mesmo dia, tal qual no filme “O Feitiço do Tempo” (Groundhog Day, 1993). Os resultados da eleição presidencial nunca são totalizados e retornamos sempre à disputa de uma eleição sem fim. Com isso abriu-se um vórtice tempo/espaço que está sugando o futuro, nos condenando a viver um eterno presente. O exemplo recente da paralisação judicial da construção das ciclovias em São Paulo é mais um sintoma dessa anomalia temporal, segundo a qual, de cosmopolita, a cidade de São Paulo tornou-se um enclave neoconservador. Através de um texto adjetivado e vago, o pedido de paralização das ciclovias feito pelo Ministério Público é uma peça exemplar da atual mentalidade neoconservadora que se fundamenta na percepção de terra arrasada e na aposta do quanto-pior-melhor.
Esse humilde blogueiro que vos escreve é um usuário diário de bicicleta como meio de transporte para o trabalho pelas ciclovias/faixas da cidade de São Paulo. Desde o início das suas atividades em 2009, este blog "Cinegnose" tem se posicionado a favor da bike como esporte, lazer e transporte por razões políticas (clique aqui), gnóstico-filosóficas (clique aqui) ou cinematográficas (clique aqui) – sem falar no fator pragmático de que, com bicicleta numa cidade como São Paulo, sempre temos a certeza que chegaremos no horário a um compromisso.
Após décadas convivendo com a impaciência de motoristas e com um trânsito cada vez mais ríspido e intolerante, sintomas de uma mentalidade paulistana cada vez mais envolta em uma rinocouraça, foi com otimismo que testemunhamos o crescimento da malha de ciclofaixas/vias em São Paulo e a promessa da interligação de uma rede de 400 km.
Bicicletas como alternativa dentro de uma filosofia multimodal de transporte nas grandes cidades parecia ser um consenso até midiático, traduzido pelo marketing de bancos, supermercados e matérias em telejornais e revistas de uma grande imprensa conservadora.
E surpreendentemente até de montadoras de veículos, como aquele comercial em que vemos um ciclista colocando a bike em uma garagem onde está o carro motivo da campanha publicitária.

O Feitiço do Tempo

[caption id="" align="alignright" width="277"] Estamos presos no dia 26 de outubro de 2014[/caption] Tudo parecia caminhar para o futuro quando, repentinamente, fomos capturados por uma espécie de vórtice tempo/espaço semelhante à daquele filme chamado O Feitiço do Tempo (Grounhog Day, 1993), no qual um repórter interpretado por Bill Murray torna-se prisioneiro de um bizarro fenômeno temporal: todo dia que ele acorda, é o mesmo dia – Murray está condenado a repetir o mesmo dia para sempre. No dia 26 de outubro de 2014 o país parece ter entrado em um vórtice tempo/espaço análogo ao do filme – o resultado do segundo turno daquelas eleições presidenciais estranhamente nunca são totalizados e sempre retornamos ao início daquela manhã, quando militantes aecistas distribuíam nas ruas cópias das capas da revista Veja que denunciava que Lula e Dilma sabiam de toda a corrupção da Petrobras, e posteriorente o PT acusava a reportagem de manobra eleitoral.
Desde então, tudo parece que está sendo sugado para esse vórtice onde o tempo se repete e até retrocede: o retorno da União Soviética, a ameaça do comunismo, a iminência de um novo golpe militar e assim por diante.
E o avanço civilizatório das ciclovias e ciclo-faixas em São Paulo é mais uma vítima desse insólito fenômeno temporal.  

Guerra contra as ciclovias

Tudo começou bem antes, quando a professora de Semiótica da PUCSP, Lúcia Santaella, alertou em redes sociais que as ciclo-faixas continham um perigo subliminar de fazer cidadãos de uma hora para outra se tornarem simpatizantes do PT, do comunismo ou do Diabo em pessoa pela cor vermelha pintada no asfalto – sobre isso clique aqui.
Aos poucos, editores de jornais e revistas da grande imprensa começaram a repetir um mantra: “falta planejamento” – “planejamento”, palavra mágica e propagandística, ótima para ser repetida em qualquer contexto pelos paulistanos sugados por aquele vórtice temporal. 
Buracos, poças d’água, postes, qualquer coisa era sintoma de “falta de planejamento” – como se a cidade alguma vez tivesse sido planejada com o caótico processo de urbanização ao invadir as várzeas dos rios e abrir ruas com repentinos postes que surgem em pleno meio-fio... Pois a conta da histórica “falta de planejamento” da cidade foi cair agora nas bicicletas.
Mas, apesar disso, o tempo andava para frente e as ciclo-faixas eram construídas, ao ponto de serem reconhecidas internacionalmente: São Paulo foi a vencedora da 10a edição do Suitnable Transport Award em janeiro desse ano com a construção do 214 quilômetros de vias exclusivas para bikes.
[caption id="" align="alignleft" width="400"] Procuradora Camila Mansour Magalhães: também prisioneira do Feitiço do Tempo[/caption]
Mas o “feitiço do tempo” de outubro de 2014 encontrou um dos seus maiores vetores de potencialização: o Ministério Público de São Paulo – a promotora Camila Mansour Magalhães da Silveira entra com uma Ação Civil Pública pedindo a paralisação da implementação das ciclovias na cidade. O pedido de liminar da promotora é claramente uma peça política dentro de um conjunto de ações que visam paralisar qualquer iniciativa do prefeito Fernando Haddad que dê visibilidade midiática à administração.
O texto do pedido da promotora é adjetivado e vago, com menções ao “desenvolvimento exacerbado do sistema cicloviário”, “número considerável de reclamações de munícipes” (o que é exatamente um “número considerável”? Quais “munícipes”, cara pálida?), “impactos no trânsito”, “falta de planejamento” (o mantra midiático em uma peça jurídica) e, claro, referência à matéria da revista Veja – a promotoria deve ter assinatura garantida da publicação através de verbas públicas do Estado para ajudar a editora da Marginal Pinheiros à beira da insolvência.

A “Síndrome de Higienópolis”

Esse vórtice aberto em 26 de outubro de 2014 parece sugar todo o fluxo do tempo, clivando o acesso ao futuro e paralisando o presente: além dessa batalha do Ministério Público contra a evolução da política de mobilidade urbana em São Paulo, temos a judicialização da Política por meio da Operação Lava Jato, com esperado impacto negativo de 13% no PIB – desemprego de meio milhão de trabalhadores na cadeia econômica que tem no topo as 23 empreiteiras supostamente envolvidas e abaixo de si cerca de 50 mil empresas.
Esse “Dia da Marmota” da política brasileira apresenta sintomas mais profundos que vão além da estratégia de sangramento e, talvez, impeachment, que a oposição quer emplacar contra a presidenta Dilma. Tornar o sangramento diário como um sacrifício cíclico que arrasta todo o País para uma espécie de repetição da cena do trauma de outubro de 2014.
Em um enclave conservador que é a cidade de São Paulo, esse acidente temporal revela facetas mais profundas no qual se legitima a onda neoconservadora atual: a concepção do Brasil como terra arrasada. Uma espécie de “síndrome de Higienópolis” (como certa vez se referiu a cicloativista Renata Falzoni), onde encara o espaço público, e de resto toda a Nação, como sem futuro ou esperanças.

Motivado pela ideologia meritocrática, encara o automóvel como o símbolo de tudo aquilo que conquistou graças ao mérito, mesmo no meio de uma terra arrasada e perdida como o Brasil. Portanto, qualquer mudança num espaço público que obriga a partilhar as ruas com pessoas menos favorecidas ou bikes que teimam em circular pelos cenários distópicos urbanos, é vista como “delírio autoritário” ou “falta de planejamento”.
Defensores ferrenhos do ideário meritocrático, esses neoconservadores adoram livros motivacionais como o chamado Quem Mexeu no Meu Queijo? de Spencer Johnson, parábola que nos ensina a aceitar mudanças na busca de nossos objetivos. Curioso é que, para eles, a necessidade de ter de aceitar mudanças só pode ser prescrita aos subalternos e “colaboradores”, nunca para eles próprios. A cidade deve se manter estática para garantir o quinhão de privilégios. Afinal, vivemos em uma terra arrasada e, se eles venceram, foi APESAR da corrupção e de um governo sedento por impostos.