Filme "Coringa": cultura cosplay e copycat gerou o Palhaço do Crime

Coringa tornou-se o arquétipo do psicopata: no ranking das mais populares formas-pensamento do século XX, ele é praticamente um deus

Fotos: Reprodução
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Para muitos pesquisadores em Sincromisticismo, desde que o Coringa surgiu em 1940 nas HQs, o personagem transformou-se em uma forma-pensamento autônoma, um arquétipo que paira sobre o tempo. Mas como produto da indústria do entretenimento, ele também reflete o espírito de cada época, do Coringa bufão de Cesar Romero nos anos 1960 psicodélicos à inteligência sinistra do Coringa de Heath Ledger. Em “Coringa” (Joker, 2019,) o Príncipe Palhaço do Crime ganha uma atualização, dessa vez um “spin off”: as origens do Coringa numa Gotham City vintage, mas que pode muito bem ser o espelho da nossa época. O Coringa de Joaquim Phoenix (numa interpretação assustadora onde, mais uma vez, um ator pagou o preço psíquico para encarnar o personagem) reflete a atual onda de ódio e ressentimento articulados pela Deep Web, fóruns e chans na Internet e pelo populismo de direita. Coringa é a persona da cultura copycat e cosplay atual dominada por um ciclo de feedback de identificações equivocadas que fogem do controle. O Palhaço do Crime; O Príncipe Palhaço do Crime; O Flagelo de Gotham; Arlequim do Ódio; O Bobo do Genocídio; O Ás de Valete. Ou simplesmente “Joker” ou Coringa, supervilão criado por Jerry Robinson, Bill Finger e Bob Kane e que apareceu pela primeira vez em Batman #1, de abril de 1940. De acordo com o plano inicial, o Coringa deveria ter morrido na sua primeira aparição, mas foi providencialmente poupado por uma decisão editorial, permitindo que fosse progredindo até se tornar não apenas um palhaço psicopata. Coringa tornou-se o arquétipo do psicopata: no ranking das mais populares formas-pensamento do século XX, ele é praticamente um deus. Numa espécie de “top of mind” das marcas dos personagens das HQs feita durante a produção de Batman do diretor Tim Burton, a pesquisa apontou que a bat insígnia ocupava a segunda colocação, logo após a imagem do sorridente rosto do Coringa – hoje o Coringa ocupa o segundo lugar no Top 100 dos vilões das HQs. Como poderoso arquétipo ou forma-pensamento com forte energia psíquica capaz de influenciar não só as mentes como as próprias ações, o personagem acumula um histórico de estranhos efeitos nos atores que o encarnam, assim como inúmeros relatos de efeitos copycats – ataques e atiradores figurando como cosplayers assassinos na vida real – veja os links ao final. Criado pela indústria do entretenimento, é chegado o momento dessa própria indústria fazer uma metalinguagem do poderoso arquétipo que gestou por todos esses anos. Coringa (Joker, 2019), do diretor Todd Phillips (Se Beber, Não Case e Escola de Idiotas), é uma incursão ao mesmo tempo vintage e realista, bem diferente das versões cinematográficas do Coringa: sem aspirações artísticas vanguardistas de Jack Nicholson, ou a inteligência cínica e sombria de Heath Ledger, ou ainda a comprometedora versão de Jared Leto, na qual o Coringa parecia mais um tipo de MC ostentação. O logotipo retro da Warner Bros. que abre o filme indica que estamos em algum lugar entre as décadas de 1970 e 80. Os planos de câmera e a direção de arte que reconstroem a Gotham City emulam a estética do novo realismo Hollywood daqueles tempos, em filmes como Taxi Driver (1976) e O Rei da Comédia (1982) – filmes protagonizados por anti-heróis perdedores em sociedades duras e violentas. Coringa é um estudo triste, lento e caótico das origens do icônico vilão das HQs. Alguém que não é visível, anônimo numa cidade em crise econômica e imersa em sacos de lixo, causada por uma greve dos serviços públicos. Enquanto até aqui todas as histórias com o vilão o figuram como um personagem (caricato sempre em tons fortes sem muitas sutilezas), aqui Todd Phillips, ao lado do roteirista Scott Silver, estão mais interessados na composição mental, moral, emocional e física de um homem simples e esquecido e que se tornou o Coringa. Isso exigiu um tour de force do ator Joaquim Phoenix (e, como sempre, o arquétipo do Coringa cobrou-lhe o preço emocional e psíquico para encarná-lo, clique aqui): a atmosfera é sempre acinzentada e os planos de câmera sempre fechados no ator – tanto seu rosto como seu corpo são minuciosamente observados por nós, assim como sua lenta transformação no palhaço do crime. O filme até aqui provocou críticas divididas em torno do debate de como Coringa representa temas sombrios atuais (principalmente a desigualdade e intolerância ao lado do crescimento do ressentimento e ódio), além de cadeias de cinema nos EUA proibirem a entrada de cosplayers do personagem – clique aqui. Nesse ponto é que Coringa se torna ainda mais interessante: ficção e realidade se tocam quando o próprio Coringa figurado no filme é um produto da mídia que, afinal, não resiste a um personagem com uma boa storyline e punchline. Tirando do anonimato um perdedor, que repentinamente vira um símbolo político de explosão da revolta e ressentimento, criando um gigantesco efeito copycat – aproximando-se da realidade. O Filme Gotham City. Os moradores estão imersos em montes de sacos de lixo na frente de cada porta, sob um céu sempre de cor chumbo. Os tempos são difíceis: há desemprego, pobreza e falta de perspectiva. E um novo candidato a prefeito: o milionário Thomas Wayne (Brett Cullen), que apenas desperta o ressentimento outrora latente. Alheio a tudo isso, encontramos Arthur Fleck (Joaquim Phoenix), um cara aparentemente gentil que gosta de fazer as pessoas sorrirem. Ele é um palhaço profissional com uma relação problemática com seus colegas da agência de clowns e um aspirante a comediante de stand-up. Ele é uma das vítimas de “tempos malucos”. Ele próprio é um ex-interno de um hospital psiquiátrico, vivendo à margem da sociedade, tentando ter um emprego regular – sobe escadarias sem fim, passa por corredores mofados em uma vida de cortiços sombrios, caixas de correios vazias e elevadores quebrados. Ele é espancado, zombado e abusado. Não se envolve com o mundo. A vida cotidiana para ele é difícil, pois as regras e os códigos que estruturam a sociedade permanecem desconhecidas para Arthur. Sua condição é de alienação, em grande parte devido a uma condição mental que causa risadas incontroláveis (geralmente nas piores situações), enquanto os olhos estão cheios de dor e tristeza. “Só não quero mais me sentir tão mal”, sussurra Arthur para a assistente social que o acompanha: ele quer mais remédios, além dos sete prescritos. Logo mais não terá nenhum, com a política de austeridade da prefeitura, que está cortando todos os serviços sociais. É um sistema que agora não tem mais tempo ou recursos para gente como ele. Isso será simplesmente o início da descida do caminho para encontrar o Coringa dentro de si mesmo. >>>>Continue lendo no Cinegnose>>>>>>>>
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