No filme "O Novíssimo Testamento" Deus não morreu - apenas se tornou inútil

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Deus existe, e ele está em algum lugar em Bruxelas. Arrogante e grosseiro, passa os dias digitando em um computador ultrapassado regras para tornar a vida de todos um inferno. Mas o que ninguém sabe é que Ele tem uma filha que está decidida a ser mais bem sucedida do que seu irmão, Jesus – libertar a humanidade do jugo de um Demiurgo através do Novíssimo Testamento. Esse é o filme “O Novíssimo Testamento” (Le Tout Nouveau Testament, 2015) do belga Jaco van Dormael, uma comédia de humor negro blasfema, herética mas, principalmente, gnóstica: se soubéssemos o momento exato da nossa morte, paradoxalmente viveríamos melhor a vida que nos resta, sem o medo do caos e do aleatório que impedem o nosso livre-arbítrio. Para Van Domael, Deus não morreria, mas se tornaria inútil. O que faria o leitor se soubesse o dia, a hora e o minuto exato da sua morte? Continuaria levando a vida normalmente cumprindo seus deveres e reponsabilidades à espera do fim? Ou mandaria tudo às favas e realizaria tudo aquilo que seus deveres e responsabilidades não deixavam? Mas quem enviou essa informação tão precisa e perturbadora? Uma pessoa que teve acesso ao computador de Deus, roubou as informações e, por vingança, as enviou para todos os celulares do planeta via mensagem SMS. E essa pessoa é nada mais do que a desconhecida filha pré-adolescente de Deus (sempre lembramos apenas  de Jesus) que tem um plano para se libertar do jugo do seu Pai: voltar à Terra e escrever O Novíssimo Testamento. Mas desta vez, e diferente de Jesus, sem morrer antes e ter controle total sobre a sua obra. Esse é o novo filme do diretor belga Jaco Van Dormael (Sr. Ninguém, 2009) que a crítica especializada vem definindo como uma “comédia blasfema”. O que para o Cinegnose significa uma comédia gnóstica. Se no filme Sr. Ninguém as referencias gnósticas eram altamente simbólicas onde o protagonista lutava contra o aleatório que interferia no livre arbítrio, em O Novíssimo Testamento a visão gnóstica sobre Deus e a Criação é bem mais explícita.

Deus existe é Ele mora recluso em algum lugar em Bruxelas. Rabugento, abusivo, desbocado e vingativo vive diante a tela de um computador ultrapassado controlando a vida da humanidade e sempre preocupado em evitar que os humanos tenham ideias de “fugir de toda a merda”. Os temas como Livre-arbítrio, Determinação e o Tempo desenvolvidos de forma simbólica e filosófica em Sr. Ninguém, em O Novo Testamento são expostos de forma direta e ironicamente divertida – se nascimento e morte são maquiavelicamente determinados por Deus em um computador, quando o homem tiver em suas mãos essas informações então poderá se libertar de toda dor e sofrimento impostos pela sociedade e ter a vida em suas próprias mãos. Então, Deus não morrerá: apenas se tornará uma ideia inútil.

O Filme

Sobre Jesus, filho de Deus, todos nós sabemos a história: veio para esse planeta para falar de um novo Deus, capaz de compaixão, perdão e amor, diferente do Deus de Moisés – onipotente, vingativo e castigador. Foi assassinado pelos romanos no meio da sua missão e ficou para os apóstolos o trabalho de interpretar a mensagem de Jesus. Mas ninguém conhece a história da filha de Deus (chamada Ea - Pili Groyne) que vive com seu Pai em um sombrio apartamento em Bruxelas com a sua mãe (simplesmente chamada de “Deusa”) e as memórias do falecido irmão, transformado em pequeno adereço decorativo sobre um móvel que, vez ou outra, ganha vida e estimula sua irmã em seus planos de se libertar do Pai. Ea é uma clara alusão ao mito gnóstico de Sophia ("Sabedoria"): aquela que caiu sob o jugo do Demiurgo, mas que secretamente procura ajudar o homem ao lembrá-lo que dentro dele está a Luz que o conecta à Plenitude. “Não tenha ideias loucas como o seu irmão”, ameaça Deus grunhindo para Ea enquanto arrasta seus chinelos e um sujo roupão.

Deus (Benoit Poelvoorde) passa o dia intencionalmente criando regras em seu computador para tornar a vida dos humanos mais miserável – a fatia de pão sempre cairá com o lado da geleia para baixo, sempre a outra fila andará mais rápida do que a sua ou um aborrecimento nunca vem sozinho. Deus brinca com maquetes de trens e cidades provocando acidentes e se divertindo com tudo. E Deus maquiavelicamente se delicia vendo as pessoas tropeçando em suas regras e tornando tudo um inferno ainda maior. Machista, Deus também torna um inferno a vida da sua esposa (Yolande Moreau - uma doce e simples dona de casa que faz bordados e coleciona cartões de beisebol) e da sua filha. Mas Ea tem um plano para se vingar do Pai e de ser mais bem sucedida do que seu irmão, Jesus. Ea invade a sala de controle, acessa os arquivos no velho computador e envia para cada um no planeta sua data exata da morte. A princípio todos acham que é alguma brincadeira de algum hacker, mas quando todos começam a ver as pessoas morrerem (e sempre de uma maneira engraçada) logo percebem que é tudo verdade. As pessoas então começam a mudar radicalmente suas vidas, decidindo realizar seus projetos mais secretos nunca permitidos pelo deveres da vida: um sabe que tem ainda 20 anos para viver e decide deixar de ser medroso e começa a pular de prédios, aviões e precipícios. Sempre é salvo das maneiras mais engraçadas e inusitadas, porque sabe que não morrerá. Outro decide passar o resto dos dias fazendo um Titanic com palitos de fósforos. Em todos há um efeito inesperado: deixaram de ter medo e deixaram de ter interesse em Deus.

O Novíssimo Evangelho

Ea decide escolher aleatoriamente seis pessoas para ouvir seus evangelhos, enquanto um sem-teto redige o Novíssimo Testamento: Catherine Deneuve decide mandar o marido embora e colocar um gorila do zoológico na sua cama, um menino de dez anos que decide viver o resto de seus dias como menina etc. De cada um deles Ea vai extraindo frases que a princípio parecem banalidades retiradas de algum guru de autoajuda.

Mas aos poucos Ea e seus novos discípulos acabam criando uma nova ordem social, bem mais agradável e sem o medo dos castigos divinos. Mas Deus está irritado e vem atrás de Ea nas ruas de Bruxelas para descobrir que é incapaz de cuidar de si mesmo e ser vítima das próprias regras arbitrárias que criou para infernizar a Criação. O filme é uma pequena fábula otimista e gnóstica cuja narrativa anárquica lembra um mix dos filmes de Terry Gilliam e Michel Gondry e com muito humor negro ao estilo Monty Python.

A grande “blasfêmia”

A grande “blasfêmia” de O Novíssimo Testamento é a moral gnóstica implícita: se o homem tiver o conhecimento, então Deus se tornará uma ideia inútil – a Criação será vivida agora em termos humanos e não mais pelo arbítrio de um Demiurgo. >>>>>Continue lendo no Cinegnose>>>>>>>