Paradoxo, Contradição e Ironia: a Teologia Negativa no Filme Gnóstico

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Como expressar o indizível por meio da linguagem? Através do caráter paradoxal da linguagem mística que fere as regras da lógica e do entendimento, os textos místicos tentam exprimir a sublimidade da experiência. Na arte moderna (da literatura romântica até o cinema) a Ironia será a estratégia que dá continuidade à Teologia Negativa.

A linguagem mística com o caráter de negatividade (a Teologia Negativa) tem em Dionísio Aeropagita (entre os anos 484 e 532) o seu principal introdutor. Considerado por muitos o pai da mística ocidental, seus textos são especulações teológicas onde procura comprovar a existência de Deus pela via negativa, ou seja, por meio de paradoxais negativas infindáveis. Veja este trecho do livro chamado De Mystica Theologia:


“Elevando-nos mais alto, dizemos agora que esta causa não nem alma nem inteligência; não tem imaginação, nem expressão, nem razão nem inteligência; que ela não pode se exprimir nem conceber; que ela não tem nome, nem ordem, nem grandeza, nem pequenez, nem igualdade, nem semelhança, nem dessemelhança (...) Não é móvel nem imóvel, nem descansa. Não é luz, nem vive, nem é vida (...) Quando negamos ou afirmamos algo de coisas inferiores ‘a Causa suprema, dela mesma não afirmamos nem negamos nada, porque toda afirmação permanece mais aquém da causa única e perfeita de todas as coisas, pois toda negação permanece mais aquém da transcendência daquilo que está simplesmente despojado de tudo e se situa mais além de tudo” (AEROPAGITA, Dionysius. Ouevrea completes Du Pseudo-Denys/Aeropagite Apud: LOSSO, Eduardo Guerreiro. Teologia Negativa e Theodor Adorno-a secularização da mística na arte moderna, Tese de Doutorado, Faculdade de Letras da UFRJ, 2007.
Esta linguagem paradoxal quer comprovar que há uma experiência além da inteligência, da linguagem, dos sentidos e das emoções. Tenta-se comprovar o indizível e o inconcebível por meio do esvaziamento da sensação e do conhecimento. Dionísio introduz na tradição ocidental essa retórica de negação incondicional de todo ente ou ser somentepara afirmar que o inconcebível é a causa suprema:


“Logo, Deus não é negado, não é posto em dúvida. O que ocorre é o contrário: é a existência indubitável e inconcebível de Deus que nega todos os atributos, pois Deus é, em terminologia medieval, o ens realissimum, o que há de mais real” (LOSSO, Eduardo Guerreiro, IDEM)

Portanto, o caminho para se tentar expressar a experiência metafísica não há outro caminho senão usar e abandonar a linguagem na ânsia pelo absoluto através do paradoxo e da contradição.

Esta teologia negativa aproxima-se de uma “teologia herética”, muito próxima do gnosticismo, ao criar dissensão com a doutrina católica: enquanto Dionísio coloca que a revelação não pode ser compreendida por qualquer um (somente por meio de uma disciplina esotérica) para católicos o amor e vida moralmente correta dão condições para qualquer um encontrar Deus.

Na arte moderna, o romantismo literário do século XIX vai dar continuidade a esta tradição mística por meio da “ironia transcedental”. É através do Romantismo, nos séculos XVIII e XIX que o Gnosticismo deixa o submundo para ascender à literatura e à cultura através de nomes como William Blake, Percy Shelley, Gerard de Nerval, Baudelaire, Rimbaud. Em todos eles encontramos a redescoberta da atitude e das imagens do pensamento gnóstico. A abordagem do gnosticismo pelo Romantismo é nitidamente sincrética, associando o gnosticismo cristão com o hermético (alquimia e cabala). Figuras como Nerval e Goethe, por exemplo, beberam em fontes gnósticas, cabalistas e alquímicas. Enquanto Goethe trabalhava com complexos simbolismos iniciáticos derivados da alquimia, Nerval estudou profundamente livros de esoterismo, magia e metafísica.

A ironia surge na lacuna entre aparência e realidade, representação e presença. Pensadores do fim do século XVIII, principalmente Friedrich Schlegel, acreditavam que essa lacuna era constitutiva da natureza humana proveniente do antagonismo entre o desejo de representar o mundo e a impossibilidade de fazê-lo. O grupo de Iena (formado pelos irmãos August e Friedrich Schlegel, Novalis, entre outros) começa a teorizar sobre a ironia como um procedimento auto-reflexivo a partir da leitura de Cervantes, Shakespeare e Diderot. A moderna concepção da ironia tematiza o intervalo entre a linguagem e a experiência empírica. A ambição pela imediatez dos modernos parece ser uma procura sempre renovada de uma linguagem absoluta, pela busca de uma palavra definitiva que dê nome às coisas.

As dimensões estéticas desse tipo de ironia são muitas: a fragmentação como forma preferida de representação, isto é, como um consciente elemento de uma completude jamais alcançável; o narrador autoconsciente que expõe as próprias construções da realidade para, dessa forma, explicitar suas limitações; a mistura entre texto primário e comentário em uma mesma página; a descrição não-conclusiva de pontos de vista inconciliáveis que deixa o leitor em um limbo interpretativo; o poema que se consome em dois significados contraditórios que se co-habitam e se anulam.

O romantismo cria um anseio pelo absoluto, uma espécie de busca religiosa que, de um lado, toma seriamente as percepções fragmentárias do mundo material como forma de revelação do espírito e, do outro, toma essas mesmas percepções como formas inferioras que encobrem como um véu o invisível. A ironia transcendental do romantismo exemplifica este irônico questionamento religioso próximo da tradição gnóstica.

Ironia e Negatividade no Filme Gnóstico

Ao explorar o tema da transcendência onde os protagonistas lutam para ascender de um mundo ilusório e corrompido (por ser uma construção artificial, obra de um demiurgo) o filme gnóstico vai explorar a ironia como caminho para evitar cair na dualidade falso/verdadeiro, espírito/matéria, ilusão/realidade etc. o caminho é o da negatividade: nem uma coisa nem outra, mas a busca de um tertium quid, uma outra via posta em suspensão pelo vazio cognitivo que a ambigüidade da narrativa fílmica procura criar.
A utilização dos instrumentos da ironia como a fragmentação, auto-referência, narrativas com pontos de vista inconciliáveis, confusão entre o ponto de vista da câmera e o ponto de vista da visão do personagem, desfechos narrativos que se anulam, narrativas em abismo etc.

Dois Exemplos da Ironia no Filme Gnóstico


Podemos apresentar dois exemplos de filmes gnósticos que partilham desse caminho da negatividade do sentido por meio de narrativas cujos desfechos são paradoxais por apresentarem interpretações que se anulam. O primeiro é o filme O Décimo Terceiro Andar (The Thirteenth Floor, 1999) com um autêntico happy end (casa em frente a uma praia, grupos de gaivotas voando, um cachorro brincando na areia, um lindo pôr do Sol). O protagonista parece ter descoberto o último nível das simulações que é, finalmente, a realidade, o ponto de partida de tudo. Mas, repentinamente, a imagem do enquadramento encolhe-se até transformar-se numa linha, reduzindo-se a um ponto de luz de um monitor de TV (veja essa sequência final abaixo). Uma pista da irrealidade: será que alguém puxou o fio da tomada? Este ambíguo e irônico final sugere que o própria realidade última, também, uma simulação como os demais níveis. Uma possível interpretação que cai na suspensão, no vazio.
Outro exemplo é o do filme Brilho Eterno de Uma mente Sem Lembrança (Eternal Sunshine of the Spotless Mind, 2004) onde elemento irônico está presente. Na seqüência final com Joel e Clementine correndo pela gelada praia de Montauk em fevereiro é ambígua, podendo ser interpretada como dois finais excludentes: ou assistimos a um típico happy end romântico em um final clichê com casais enamorados correndo felizes à beira do mar ou um final trágico: as seqüências de Joel e Clementine após o apagamento de memória ter sido finalizado, retornando ao primeiro plano que inicia o filme (Joel despertando em sua cama pela manhã), poderiam ser mais uma instância narrativa interna das memórias de Joel. A partir daí até o final poderíamos estar vendo mais narrativas das memórias de Joel. Na seqüência de desfecho na praia de Montauk as imagens do casal vão dissolvendo-se em fade out para o branco. Isso acontece também em algumas seqüências anteriores aonde objetos vão tornando-se brancos até desaparecerem (como na seqüência do desaparecimento dos livros na Bernes e Noble) como metáfora de apagamento das memórias. Além disso, há uma descontinuidade na corrida do casal, em loop: a corrida repete-se até o fade out. Novamente, este loop aparece como metáfora de apagamento ou degeneração da memória como na seqüência em que Joel persegue Clementine pela rua após uma discussão: o tempo e a perspectiva parecem estar em loop, impossibilitando Joel de chegar ao final da rua e alcançar Clementine