Não fecho as pernas, fecha você sua boca

Uma mulher que quer fazer um aborto não está interessada se sua tia Celina acha um crime, se o seu primo Robério considera a legalização genocídio, ou se o idiota do Sikêra manda subir hashtag

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Sikêra, aquele apresentador de um programa abjeto, com gente fantasiada com cabeça de burro, que celebra a morte de "bandido" e acha ok ser misógino em rede nacional fez mais uma idiotice hoje. Não que se esperasse alguma coisa boa dele, é claro.

Mas ele, um homem de deus, né? Mandou os cristãos e os virjões da internet subir a hashtag #fecheaspernas porque é claro que um sujeito que mostra gente sendo morta em seu programa, prega que bandido bom é bandido morto e é chegado do maior genocida dentre os presidentes do mundo neste momento, é claro que ele é PRÓ VIDA.

Não pode abortar.

Pra não engravidar, é só "fechar as pernas".

Isso não é sobre vida de bebês inocentes que, se nascerem, ficarão absolutamente desamparados junto com suas mães. Isso é sobre o controle do corpo da mulher. O controle do útero, o controle da buceta, o controle da sexualidade.

Uma mulher que quer fazer um aborto não está interessada se sua tia Celina acha um crime, se o seu primo Robério considera a legalização genocídio, ou se o idiota do Sikêra manda subir hashtag, se você é contra porque acha que é uma vida e todos têm direito à vida. Uma mulher que quer fazer aborto vai fazer esse aborto. Ou vai tentar e se estrepar. Vai tentar numa clínica ou em casa com remédio, se conseguir o remédio, ou enfiando uma agulha de tricô no útero e depois morrendo de medo de ir ao hospital fazer uma curetagem, ser denunciada e presa.

Uma mulher que estiver passando pelo desespero de uma gravidez indesejada vai colocar sua vida em risco porque o Estado não nos dá o direito de escolher legalmente o que queremos, então burlamos a lei. As que conseguem arcar com os custos de uma clínica são privilegidíssimas; para elas, o aborto é praticamente legal. Mas não é o que acontece com quem não tem nenhum dinheiro. Com as mulheres negras, pobres, da periferia.

A sua opinião sobre aborto não importa. As mulheres vão continuar abortando e correndo risco de vida enquanto não for legal e seguro. Não é possível que seja tão difícil de entender.

A legalização do aborto não é uma questão de crenças, tabus ou religião, que sequer deveriam ser envolvidos nessa questão. É uma questão de saúde pública e deve ser tratada como tal.

A quem argumenta que, se legalizado, o aborto vai virar "método contraceptivo”: não sei nem o que dizer pra vocês. Ninguém acorda um dia e pensa “nossa, que dia lindo, acho que vou fazer sexo e engravidar pra fazer um abortinho”! Isso não é nem uma questão. Quem fala em “banalização do aborto” nunca parou nem pra pensar direito no assunto e em pra ver os dados de países que legalizaram o aborto, como foi o caso do Uruguai. Sabe o que aconteceu?

As mulheres que abortariam ilegalmente correndo risco de vida abortaram de forma legal e segura e não morreramNenhuma mulher morreu. 

Não gosta da ideia do aborto? Pois bem, não faça um. A sua opinião não vai mudar o fato de que mulheres abortam. Mulheres abortam todos os dias de forma insegura. Mulheres que são mães abortam ilegalmente. Mulheres que não querem ter filhos abortam diariamente. Mulheres religiosas “contra” o aborto abortam diariamente.  Mães de família abortam, adolescentes abortam, mulheres pobres abortam, mulheres ricas abortam, mulheres casadas, mulheres solteiras, mulheres empregadas, desempregadas. Mulheres de todos tipos abortam e não há opinião alheia que vá fazer isso mudar.

Eu já fui essa mulher. Sei bem o que estou falando. Não fechei as pernas e não foi “descuido”, eu tomava pílula. Acontece. Aconteceu comigo.

E ainda bem que eu tive condições de encontrar um médico confiável e uma clínica boa. Ainda bem que eu não deixei qualquer coisa que eu acreditasse na época interferir na minha decisão, pois eu estaria hoje em uma lama inimaginável.

Os argumentos contra as mulheres que morrem tentando abortar também não são nada pró vida: “mereceu, matou, morreu”, “na hora de abrir as pernas foi bom” e todas aquelas outras pérolas. Além da ignorância e da percepção de a vida da mulher não vale nada, isso também demonstra uma atitude punitivista com a mulher que faz sexo. Deu? Agora aguenta. Ninguém pergunta onde está o homem que engravidou. Ninguém quer saber se ele se protegeu, se ele se preocupou. Diante dos olhos desse terrível senso comum, ao homem não cabe nenhuma responsabilidade quando o assunto é contracepção.

Aliás, o assunto não deve nem cair pra esse lado: não estamos falando de contracepção e sim de quando ela falha.

Então, Sikêra, ninguém vai fechar perna nenhuma. Fecha você essa boca imunda pois você nem útero tem pra abortar. Shh.

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