Ginga para todos

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Texto publicado e: O Povo online


O pesquisador responsável pela criação do sistema brasileiro de TV digital defende a inclusão social através da interatividade nas televisões

Por: Émerson Maranhão
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O pesquisador e professor Luiz Fernando Soares tem uma certeza: somente com a efetiva implementação da TV interativa no Brasil, as classes D e E terão a oportunidade da inclusão digital. “Só 3% da população destas classes têm acesso a computador e 84% nunca usaram um computador e nunca tiveram acesso a Internet na vida”, revelou, em entrevista ao O POVO.

O caminho para essa revolução, ele aponta: é o Ginga, um software que faz a ponte entre o sistema operacional do receptor da televisão às aplicações de interatividade criadas e disponibilizadas aos telespectadores.

Criador deste software, que se tornou o padrão brasileiro de TV digital, Luiz Eduardo acredita que o Brasil está muito à frente de outros países no uso desta tecnologia, mas alerta para a necessidade de investimento imediato em pesquisa.

O POVO - Qual é o diferencial do Ginga?

Luiz Fernando Soares - O Ginga tem vários diferenciais em relação aos outros sistemas. Além de uma série de vantagens que realmente coloca a linguagem NCL como um avanço tecnológico sobre as linguagens declarativas para definição de programas para TV. O reconhecimento do Ginga, inclusive, veio primeiro do exterior. Por ser uma linguagem declarativa, ela é de muito fácil utilização, não exige um programador especialista. E com isso podemos ter pessoas não especialistas gerando conteúdos interativos, o que torna um lado da inclusão social possível, que é a produção de conteúdo. Ela não precisa ficar na mão daqueles que exigem conhecimento muito grande. Isso vai permitir que as camadas mais pobres possam além de gerar um conteúdo se apropriar também da produção deste conteúdo.

OP - Esse modelo que o senhor apresenta é muito próximo do conceito de inclusão digital. O senhor não acha que ele já se dá através de outras mídias?

Luiz - Quando se discute qualquer coisa nesse País, sempre tem esse problema de achar que uma coisa substitui a outra. E não é, uma complementa a outra. Claro que a gente não vai relegar a um segundo plano. A televisão é muito importante para o País. Porque se você for nas classes D e E, por exemplo... a última pesquisa do Comitê Gestor da Internet no Brasil mostra que só 3% da população das classes D e E têm acesso a computador e, pasme você, 84% nunca usaram um computador e nunca tiveram acesso a Internet na vida. Mesmo quando a gente vai às classes A e B, a quantidade de pessoas que já usaram Internet ou computador é muito baixa. Ao passo que, se você vai às classes D e E, 95% dos lares têm televisão. Ela passa a ser um meio muito importante para a inclusão social. Mas sempre a gente vê como um meio complementar. Na realidade, é uma política e nela a televisão tem um peso muito grande. Ela não vem substituir nada, vem complementar. E aí vou até mais além. Porque vai ter uma convergência e a gente vai encontrar exatamente o sistema de IPTV, que é a TV sobre a Internet.

OP - Como está o Ginga hoje?


Luiz - O Ginga teve uma repercussão muito grande internacionalmente. Principalmente no mundo científico. Foi quando a gente teve reconhecimento, quando a linguagem NCL foi escolhida como padrão para IPTV, a primeira vez que o País tem um padrão na área da tecnologia da informação e comunicação. Teve também repercussão no sentido de que a utilização da interatividade com a inclusão social seria muito importante e se começou a falar muito na TV interativa. Isso nunca iludiu a nós, pesquisadores. A gente sabia que não é assim de uma hora para outra que você transforma uma tecnologia em produto. O que vem acontecendo nesse tempo? O Ginga tem uma parte brasileira, que é a parte do NCL e do Lua, e tem outra parte que é do Java, que veio da Sun, e teve muito atraso por questão de royalties.

OP - Royalties relativos ao Java?


Luiz - Sim, do Java. O NCL/Lua não tem royalties, é código aberto, software livre. Isso atrasou muito o processo de lançamento dos produtos. Não tem produto nenhum que saiu, por exemplo, só com o Ginga/NCL – e isso foi muito por pressão dos radiodifusores. No meu entender, foi uma coisa extremamente equivocada e foi um equívoco muito grande o governo brasileiro não lançar produtos com interatividade. Nesse meio tempo, por exemplo, a Argentina fez caminho oposto. Reconheceu, coisa que deveríamos ter feito, que o middle software NCL/Lua era muito melhor e que eles podiam acelerar o processo. A Argentina lançou o sistema deles só com o middle NCL e já lançou com uma compra enorme do governo argentino de vários set-top box com o Ginga. Hoje, apesar de termos quatro vezes a população da Argentina, ela tem a mesma ordem de produtos com Ginga que temos aqui, da ordem de 3 milhões para cada país, com o Ginga embarcado. O Ginga passou esse processo de definição das questões de royalties e mais recentemente começou o embate com relação à obrigatoriedade do Ginga dentro do PPB, do Processo Produtivo Básico. E aí começou uma discussão do ovo e da galinha. Ou seja, a indústria de radiodifusão dizia que não fazia muito conteúdo porque não tinha receptores, a indústria de recepção dizia que não botava receptores porque não era oferecido conteúdo. As duas coisas não são verdadeiras. Na realidade, hoje, a quantidade de produtos com o Ginga já é enorme, eles só não são divulgados. Até porque existe o medo da indústria de recepção de divulgar que as televisões que já estão vendendo – até as televisões da Sony - já vêm com o Ginga junto. Eles têm medo de divulgar isso porque o consumidor compra uma televisão com o Ginga e chega em casa e não tem o serviço de transmissão, vai no Direito do Consumidor e diz: “me venderam um produto dizendo que oferecem uma coisa e não oferecem”. A indústria de recepção reclama muito da indústria de radiodifusão. Eles estão reclamando não com relação ao Ginga, mas que tem muito pouco conteúdo em HDTV, sem interatividade nenhuma. O conteúdo de HDTV é muito pobre ainda. A segunda é uma falácia total. Eles dizem que o Ginga encarece o receptor - e realmente o receptor tem que ser um pouco mais caro, mas esse mais caro é muito pouca coisa.

OP - Quanto mais caro?


Luiz - Vai sair na ordem de uns R$ 10 mais caro, mas que com o sistema office, vai na ordem de uns R$ 40 mais caro. O que eles alegam? Se você embute R$ 40 numa televisão que custa R$ 5 mil não é nada, mas se embute R$ 40 numa televisão que custa R$ 300, que é o que compra a classe mais pobre, é um problema. Isso vai contra tudo em termos de inclusão social, e a gente quer exatamente a inclusão para as classes mais baixas. Eles alegam: “mas aí eles vão ter que pagar”. Eles só veem custo de um lado, não veem o custo da ausência, ou seja, e o que ela paga em não ter o Ginga? Em não ter acesso, por exemplo, a serviço de saúde, bancário, de educação? Isso não é levado em consideração. É aquela falácia dessa história e a gente tem que estar muito atento porque o Ginga hoje tem uma representatividade muito grande para o País na questão da inclusão social.Não só do ponto de vista da população de mais baixa renda ter acesso a informação, mas ter acesso a serviços que para a gente é tão comum. A gente senta em frente ao computador, vê a conta bancária, compra passagem de avião etc. Esse pessoal não. Só 3% da população tem acesso a isso. Então, o Ginga, na realidade, a interatividade na televisão, vai possibilitar a essas classes C, D e E também ter esses serviços. E o outro lado da questão que é o direito de produzir conteúdos. Por que eles não têm direito de gerar conteúdos a partir disso aí? Por que eles não vão ter direito de produzir conteúdos interativos? O Ginga possibilita fazer isso, exatamente com essa linguagem simples, que é o NCL/Lua. Não é à toa que a gente vê, por exemplo, a grande batalha que as TVs comunitárias estão fazendo pelo Ginga.

OP - O que falta politicamente para o Ginga vingar?


Luiz - O Governo brasileiro, no lançamento do sistema de TV digital, foi muito forte e muito positivo. Nessa época, o governo pegou com rédeas a questão da inclusão através da TV digital e o processo foi muito bem. Só que chegou a um ponto em que ele se afastou, deixou nas mãos da indústria de radiodifusão e de recepção. Ele se omitiu, essa é que é a verdade. O PPB é uma tentativa desse governo de retomar as rédeas desse processo de inclusão, porque inclusive o Brasil se comprometeu com o resto do mundo. O Brasil convenceu 11 países da América Latina e agora está convencendo os da África a adotar o sistema nipobrasileiro. E esses países só adotam o sistema nipobrasileiro por causa do Ginga. Isso é tão importante que, por exemplo, Cuba, que está querendo adotar o padrão chinês, China está indo a Cuba oferecer o padrão chinês com o Ginga. Ou seja, o que chamou atenção para a adoção foi justamente essa facilidade de uso e a possibilidade da linguagem NCL/Lua. O Brasil vendeu isso para outros países, então o governo não pode deixar as rédeas soltas do jeito que está.

OP - Saindo da academia e indo para a parte prática, o que o Ginga mudaria hoje na minha vida, na minha casa?


Luiz - Você que é uma pessoa que tem acesso a todas as facilidades de Internet, diria que em termos de serviços para você não vai fazer nenhuma diferença. O que faria diferença para você? Seria uma nova TV. É entretenimento de uma forma diferente. É você ver um jogo de futebol, por exemplo, e poder escolher o ângulo que a câmera vai passar. É você pode ver o tira-teima na hora que quer e não na hora que o Galvão Bueno quer. É você ter a televisão personalizada para você. Na hora de receber uma propaganda dizendo: “Beba cerveja A ou B”, vai fazer: “Beba cerveja A ou B no boteco do seu Joaquim, que é do lado de sua casa”, é a personalização da TV. A possibilidade que só o Ginga tem que é você acabar com essa ideia de que televisão é uma telinha. Televisão são múltiplos dispositivos. A sua casa hoje é um ambiente que tem computador, celular, televisão. Então, a exibição de televisão não pode ser mais só na tela. Você tem que ter exibição na tela, no computador, no celular, tudo junto. E tudo isso vai fazer você ter uma sensação de inclusão, aí no sentido de inclusão no ambiente de percepção daquela informação que está sendo transmitida, seja ela qual for. Isso para você vai fazer diferença. É uma nova TV, completamente diferente e aí vamos precisar ter aplicações bem feitas. As aplicações que hoje as radiodifusoras estão fazendo são muito pobres, muito mal feitas.

OP - Onde é que o governo brasileiro erra e onde acerta com a TV Digital?


Luiz - O governo não errou em nenhum momento. O erro que cometeu não foi de visão, foi erro de omissão. Teve um período em que ele se omitiu e não poderia ter se omitido, deveria ter se imposto mais. Até 2007, o governo foi bastante atuante, mas depois ele deixou...

OP - Como o Brasil está em relação aos países do Primeiro Mundo na questão da TV Digital?


Luiz - Muito na frente. E a razão é única. Nos Estados Unidos, ninguém nunca deu bola para a questão da TV digital por razões óbvias. É um país rico, você faz a inclusão (digital) pela Internet, não existe TV aberta, só a cabo. O Brasil é uma coisa única no mundo em termos de TV aberta.

OP - E em relação à Europa?


Luiz - A Europa escolheu um padrão que é o MHP, da mesma forma como a gente tem a parte Java e a parte declarativa. Só que demoraram a escolher esta parte declarativa, começaram a aparecer várias implementações, pulverizou. O próprio MHP, por questão de royalties, morreu. Aí você tinha Itália com uma coisa, França com outra, Alemanha com outra. Moral da história: morreu, não teve exatamente essa hiper-operabilidade, não conseguiram fazer a tal hiper-operabilidade. Na época, diziam que o padrão europeu estava em 68 países e o padrão japonês só estava no Brasil e Japão, naquela época era só no Brasil e Japão. E isso incomodava a gente muito. Pô, 68 a 2! Estamos tomando de goleada! Quando um amigo resolveu fazer uma continha, se você somasse a população desses 68 países não dava a população do Brasil e Japão. Nosso mercado era muito maior com os dois países.

OP - Estamos à frente, então?


Luiz - Estamos. Tecnologicamente, ainda estamos à frente. Ainda.

OP - Por que ainda?


Luiz - Porque a tecnologia é muito rápida, ela evolui muito rápido, se a gente não evoluir... Por exemplo, todo o dinheiro passado para a academia – e olha que foram 76 institutos de pesquisa envolvidos no desenvolvimento do sistema – todo esse dinheiro parou, acabou. Desenvolveu, acabou. Só que não é só assim. Quando você acaba de desenvolver hoje, tem que desenvolver o de amanhã. Se você não desenvolve o de amanhã, vem outro e substitui. A academia hoje deveria estar investindo no futuro. Ainda está. Você ainda encontra... Outro dia somei, são 22 universidades só com pesquisas sobre o Ginga. Agora já não fazem mais naquele volume que faziam antes. Se ficar muito tempo sem dinheiro, não vai conseguir e os outros estão avançando, eles (americanos e europeus) não são bobo.

QUEM É O PESQUISADOR

Luiz Eduardo Soares é professor titular do Departamento de Informática da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Já foi presidente da área de computação na CAPES, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Computação (SBC) e atual membro de seu Conselho, e vice-presidente do Laboratório Nacional de Redes de Computadores (LARC). É o atual representante da academia no Módulo Técnico da Câmara Executiva do Fórum de TV Digital Brasileiro.

A tecnologia anda muito rápido
Hoje, nós temos que pensar na NCL de amanhã

1991
FOI O ANO
em que o Ginga surgiu, a partir de um modelo de dados chamado NCM

54
EMPRESAS
prestadoras de serviço estão registradas na Comunidade Ginga

Dicionário

1) NCL é a sigla de Nested Context Language , uma linguagem declarativa para autoria em hipermídia

2) Middleware é uma camada de software posicionada entre o código das aplicações e a infra-estrutura de execução (plataforma de hardware e sistema operacional). Um middleware para aplicações de TV digital consiste em máquinas de execução das linguagens oferecidas, e bibliotecas de funções, que permitem o desenvolvimento rápido e fácil de aplicações.

3) Ginga é o nome do middleware do Sistema Nipo-Brasileiro de TV Digital Terrestre

4) MHP é a sigla de Multimedia Home Platform

A última pesquisa do Comitê Gestor da Internet no Brasil mostra que só 3% da população das classes D e E têm acesso a computador e, pasme você, 84% nunca usaram um computador e nunca tiveram acesso a Internet na vida.

Hoje, apesar de termos quatro vezes a população da Argentina, ela tem a mesma ordem de produtos com Ginga que temos aqui, da ordem de 3 milhões para cada país, com o Ginga embarcado


Foto: O Povo Online