o despertar do sono profundo

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O3hq4
a imagem é do pátio de um presídio. na verdade aquilo nem é um pátio.
 
na verdade mesmo, aquilo nem é mais um presídio, os presos nem ficam mais em celas.
vivem livres dentro da prisão.
e, como ainda não despertaram do sono profundo, devoram-se.
os próprios presos, inconscientes de que se matam quando matam o outro, ainda passaram – celulares em punho – a fazer a cobertura em tempo real de sua própria aniquilação.
esse fratricídio é o novo reality show dos sociopatas.
nas redes antissociais pululam imagens de corpos mutilados, como memes abjetos feitos por taradinhos insensíveis que veem naqueles sujeitos somente objetos.
as tvs zoomificam imagens, como se tentassem colocar o telespectador brutalizado ali dentro do set.
as imagens são aterradoras.
parecem gravuras rupestres correndo aloucadas pelas paredes das cavernas: bocas secas e lábios crispados, olhos esbugalhados, veias entumescentes, músculos magros, facões enferrujados, tacapes, lanças toscas, pedras…
a imagem dos homens da horda primeva.
quem são?
como se chamam, qual é a história de cada uma daquelas tragédias e até onde poderiam ter sido evitadas?
quem quer saber?
uns dizem que são bichos. outros, que são monstros.
outro dia li o relato de um infeliz que estava encarcerado naquele inferno, mesmo sem condenação.
ele ouviu o silêncio que precede o esporro.
“acho que vão matar gente aqui hoje. tá tudo estranho”, escreveu para a namorada. “se eu for, amo vocês todos”, e termina: “tô com medo, amor”.
nunca mais mandou mensagem.
lá fora, por trás dos muros, ouve-se gritos de mulheres: mães, esposas, irmãs..
ouve-se também choro e ranger de dentes.
essa é a parte que menos importa no noticiário.
porque a família humaniza o preso. e o sociopata o quer desumanizado.
aqueles homens devem ser vistos como feras, e como feras devem ser tratados.
são animais selvagens, incivilizados e incivilizáveis.
por isso, devem sangrar como porcos.
é assim que tiram a humanidade das pessoas para depois chamá-las de desumanas.
por isso, humilham também os familiares dos presos durante as visitas.
 
nas visitas só restam trocas de olhares sofridos, alguma troca de carinho, de perdão.
 
os corpos doem quando se abraçam.
sim, são homens.
a maioria ali, inclusive, se parece comigo.
se não houvesse a proibição pela venda de algumas drogas, nada disso estaria acontecendo.
morrem muito, mais muito mais pessoas em decorrência do conflito armado pelo comando territorial do mercado, e pela repressão das forças do estado, do que pelo uso destas drogas.
o brasil, que faz fronteira com 11 países, trava uma luta inútil, numa enxugação de gelo estúpida contra o tráfico.
veja o exemplo dos esteites.
mesmo com todo aquele aparato bélico e com o seu sofisticado serviço de inteligência, são eles que consomem a metade da cocaína produzida no mundo.
 
e olha que eles nem fazem fronteira com países produtores de coca, hein.
 
todos nós ganharíamos muito mais se as drogarias já estivessem a oferecer drogas de excelente qualidade a todos os adultos que quisessem comprá-las.
 
e ao invés de homens sem chinelo e sem camisa ficarem se matando pelo lucro sujo - num mercado sem controle de qualidade - estaríamos a lucrar com impostos.
 
talvez até construindo escolas e centros culturais com essa grana.
 
talvez a maioria daqueles homens que foram decapitados, os que tiveram seus corações arrancados dos corpos e seus olhos extirpados, ainda estivessem vivos.
 
e vivos, também, talvez estariam os que os mataram.
 
mas quem se importa com os que morreram e com os que mataram?
 
são feras, e devem ser tratados ferozmente.
 
por isso, as imagens dos amotinados nas penitenciárias do norte excitaram tanto os nossos sociopatas de plantão.
esses insensíveis homens de bens são contra o aborto e a eutanásia: “só deus pode tirar uma vida”.
 
num átimo, se divizinam e são a favor da pena de morte para os bandidos pretos e pobres.
 
até agora ninguém pediu a morte de cunha ou de marcelo odebrecht.
são esses mesmíssimos cristãos que torcem, comendo pipoca no sofazão retrátil, para que os amotinados nas rebeliões no norte do brasil se matem uns aos outros.
assim, sobra mais espaços nas prisões para enfiar ali mais pretos e pobres.
acreditam, mesmo, que bandido bom é bandido morto.
é assim que esses sociopatas dão uma espécie de salvo conduto para que os meganhas já matem a molecada na hora da abordagem, como o fazem amiúde.
porque levá-los à delegacia, depois ao fórum, envolver promotores públicos, gastar gasolina para levá-los até um presídio…
 
tudo isso é desnecessário e custa nossos impostos.
ódio de classe, sociopatia, desumanidade.
é como se dissessem: matem todos os amarildos!
 
ou deixem que se matem, que se morram.
palavra da salvação.