O Quilombo Campo Grande existe e resiste; conheça o contexto, o trabalho e a história

Acampamento Quilombo Campo Grande, que está sendo brutalmente atacado pela polícia de Minas Gerais em uma reintegração de posse, tem uma história de luta, resistência e amor à terra e ao trabalho

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O campo, historicamente, é um território de luta e resistência. Foi do campo que saiu o grito revoltoso e revolucionário dos mujiques na Rússia anacronicamente feudal.

Foi também no campo que se deu o primeiro assassinato na história bíblica, com o agricultor, Caim, matando seu irmão pecuarista, Abel.

É no campo que se configura o nosso histórico de segregação, privilégios e concentração de riquezas.

No Brasil, desde a invasão portuguesa, a terra, tomada à força, está destinada aos brancos, que invadem, grilam, deterioram, exploram; mandam e desmandam, matam e desmatam.

Os quilombos são a primeira forma de resistência contra esses desmandos e também o primeiro lugar de confrontação ao uso predatório da terra, dando a ela um sentido social e coletivo.

O Quilombo Campo Grande, situado em Minas Gerais, foi o maior agrupamento quilombola brasileiro, nove vezes maior que Palmares e que, no século XIX, contava com uma população de mais de 20 mil habitantes, formada por negros escravizados, negros alforriados e brancos pobres. Sua extensão ia do triângulo mineiro até áreas no nordeste de São Paulo.

Sinônimo de luta para o povo mineiro, os quilombolas campo-grandenses enfrentaram bravamente as investidas da Coroa Portuguesa até a sua destruição.

Foi inspirada nessa história de luta, comunitarismo e quilombismo (termo empregado por Abdias Nascimento na obra seminal intitulada Quilombismo), que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) nomeou o acampamento situado no sul de Minas, no município de Campo Limpo, ocupando as terras abandonadas, em 1996, pela usina Ariadnópoles, propriedade da Companhia Agropecuária Irmãos Azevedo (CAIA), que outrora produzia açúcar e álcool, mas sucumbiu afundada em uma dívida de mais de R$ 300 milhões em direitos trabalhistas.

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Desde então, há mais de 20 anos, 450 famílias (cerca de 2 mil pessoas) vivem nessa área de quase 4 mil hectares de terra, plantando, produzindo e comercializando alimentos livres de agrotóxicos, como milho, feijão, cereais, hortaliças, frutas, fitoterápicos, leite e derivados.

Ali também se produzem produtos processados como doces e geleias e, por ano, são colhidas mais de 510 toneladas do saboroso café Guaií, puro, sem mistura, 100% arábico. No local também há a criação de 1.200 bovinos, além de porcos e galinhas.

Ou seja, o lugar gera riqueza, trabalho dentro e fora do acampamento e movimenta a economia do município. No acampamento há, também, a escola Eduardo Galeano, que atende crianças e jovens em parceria a Escola José Mesquita Neto, de Campo do Meio.

Das 450 famílias que vivem e trabalham no assentamento, 140 delas são de ex-funcionários da usina falida.

Ocupar e produzir

O café Guaií, produzido no Quilombo Campo Grande, cujos grãos são torrados e moídos, é vendido em feiras e cooperativas por todo o país e já rompeu as fronteiras nacionais, chegando aos Estados Unidos e Alemanha e despertando o interesse dos chineses.

Cerca de 70% da produção é vendida no município de Campo Limpo, nas feiras de domingo e em vendas individuais nos outros dias da semana. Os agricultores também vendem o café em Belo Horizonte, em outros municípios vizinhos e, mesmo, em feiras Brasil afora.

Outro trabalho importante está nas mãos de um grupo de mulheres. Chamadas de Raízes da Terra, esse grupo cultiva sementes agroecológicas e orgânicas e cuidam da manutenção de hortas medicinais para a produção de produtos fitoterápicos. Essas agricultoras também produzem pomadas, gel de massagem, xarope e florais.

Outro trabalho importante é a recuperação de nascentes, feito com o plantio de mudas nativas do estado com o objetivo de recuperar as áreas degradadas, aplicando o conceito de agrofloresta: plantar sem devastar. O acampamento está incluído no Programa Nacional de Reflorestamento do MST, o chamado Plano Nacional “Plantar Árvores, Produzir Alimentos Saudáveis”, cuja meta é levar as famílias assentadas e acampadas, e a sociedade em geral, a plantar 100 milhões de árvores pelo país nesta década, recuperando de áreas degradadas e disseminando a cultura das agroflorestas e dos quintais produtivos.

Impasse

Em 2015, em meio a mais um processo de desocupação, foi selado um acordo e emitido um decreto estadual (Decreto Estadual n.º 365/2015) propondo a desapropriação de 3.195 hectares do terreno; os empresários seriam ressarcidos em R$ 66 milhões. O Estado se comprometera a pagar a dívida em cinco parcelas. Porém, tudo voltou à estaca zero. Os acionistas da companhia, apoiados pela bancada ruralista, recusaram o acordo e pediram que o decreto fosse anulado.

Em 2016, o Governo de Minas Gerais decretou que o terreno de 82 hectares, onde funciona a escola, fosse desapropriado por interesse social, alegando que “o imóvel é necessário ao funcionamento de estabelecimento de ensino e outras estruturas com fins educacionais e sociais”.

Em 2018, o juiz Walter Zwicker Esbaille Júnior expediu uma ordem de reintegração de posse, obrigando os agricultores a deixarem a terra que cultivam, ameaçando-os, inclusive, com repressão manu militari.

Estado

Uma questão intrigante: o estado caminha com a mesma voracidade para cobrar a dívida milionária dos “donos” da terra? Estamos a assistir o mesmo espetáculo desumano e burguês de 250 anos atrás? O uso social da terra não está sendo levado em consideração pelas autoridades? É crível que se possa priorizar o cultivo de uma monocultura, em grande escala, em detrimento dessa diversidade de atividades que os assentados promovem? Só uma reforma agrária ampla e inclusiva, com a valorização da agricultura familiar, garantirá a paz no campo e a produção de alimentos saudáveis e a preço justo. Chega de polícia, fogo, desapropriação e morte. Paz no campo.