Despir para proteger

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* Com a (linda e essencial!) colaboração de Lulu Anders Conceito curioso. Um pai, para proteger seu filho, corajosamente se embrenha entre manifestantes black bloc e o retira de lá. O menino a princípio se recusa a sair, mas o pai argumenta pungentemente sobre a inutilidade daquele tipo de manifestação, diz que o ama... “desce ao chão, águia audaz, que a noite é fria”. Li isso, bem assim, aqui. Mas talvez a tinta em que aquelas linhas foram escritas só fosse cor-de-rosa para os meus olhos. Essa névoa romântica me fez pensar numa cena de carinho equivocado, de autoritarismo por engano, vinda de um pai bem-intencionado, amoroso, preocupado com o bem-estar de seu filho, que não queria perdê-lo, vê-lo preso ou machucado. Mas daí eu vi o vídeo do que realmente aconteceu e foi dito e como tudo aconteceu e dito. Vi os puxões, os trancos, a violência. Vi o dedo adulto em riste, martelando seu controle no peito de um menino. Vi o tom de voz de “eu sou seu dono”. Vi o riso e o escárnio dos repórteres que registravam a cena. Vi o rapaz que, mesmo vacilante e fragilizado, sabia-se com razão, mas estava preso na angústia de não conseguir se expressar e argumentar de forma coerente em meio à comoção do momento, repetindo apenas as mesmas coisas de novo e de novo, gritando para ser ouvido a despeito silenciamento imposto pela agressão que ali sofria, publicamente, de seu pai. Em dado momento, o pai arranca do rosto do filho a camisa preta que o cobria. Esse “desmascaramento” foi muito simbólico. O rapaz, adolescente, construindo um eu autônomo, foi despido à força dessa identidade propriamente sua por um pai que não a aceita, que não o aceita. Pois o filho tem que ser o que esse pai dele, dono dele, quer que ele seja. “Você é meu filho. Eu te sustento” Ele repete diversas vezes. Mas poderia ter dito “você pertence a mim. E enquanto você depender e não tiver como se defender de mim, você será só o que eu quiser que você seja e agirá só como eu quero que você aja.” Como pode o desnudamento do rosto do jovem à revelia, essa exposição, passar por proteção e cuidado? O gesto poderia muito bem ter sido o de abaixar-lhe as calças. Porque a finalidade era a mesma: enfraquecê-lo, ridicularizá-lo, forçá-lo a submeter-se por medo e vergonha. Se há alguém ali sendo cuidado e protegido, esse alguém é o tirano que se refestela no pátrio poder poder familiar. “É o meu sonho”, protesta o rapaz. E, não contente com a humilhação que praticava, o pai foi mais longe: “você não vai mudar o mundo, meu filho”, ele decreta, com toda a amargura da geração que falhou e inveja o mundo de possibilidades da juventude. Com as certezas do velho que se nega a ouvir o novo, que se resigna e se acomoda em sua impotência. Como a “sabedoria” desdenha da paixão e do vigor que ainda não foram sufocados pelo cinismo! Quem acha que isso é uma forma de empatia, de “eu já passei por isso” está redondamente enganado. Essa parte do “diálogo” se resume a “Você é fraco, você é tolo. Os meus grilhões um dia serão os seus e não há nada que você possa fazer para mudar isso. Eu aceitei, você também tem que aceitar. Até mesmo os seus sonhos me pertencem.” Não há debate, não há discussão, não há apoio, nem orientação. Há apenas o mandar e o obedecer. Assim como o mundo faz com o pai, sente o pai que deve fazer com o filho. “Você não estava falando comigo”, diz o garoto. E o tirano lança mão de sua cartada maior, do último refúgio de seu autoritarismo parental, o autoritarismo que empurra e bate, mas não é violência; que grita, mas não agride; que expõe, mas está protegendo; que humilha, mas é para o seu bem. “Eu te amo, cara”, ele diz, emocionado. Eu te amo, eu sou seu pai. Eu te amo, me obedeça. Eu te amo, é seu dever me entender e me perdoar. Eu te amo. O menino balança, incapaz de ignorar o sentimento, preso na coleira invisível de seu próprio amor, este sim real, incondicional, transformado em ferramenta de controle. Responde: “eu também”. Já o amor do pai se chama socialmente de amor, mas tem pouco de amar de fato. Porque é difícil acreditar num amor que não respeita. A pessoa que o pai ama, ali, não é a pessoa que o filho realmente é, mas o projeto, a pessoa que ele quer que o filho seja. O “resto”, a “máscara”, ele arranca, ele destrói, ele desconsidera. Porque o covarde precisa matar no outro aquilo que um dia teve tirado de si.