Seu papai é noel? ou Sobre adultismo natalino

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Imagem de Haddon Sundblom


*Eu tenho um texto pronto sobre como criança não é personagem de RPG que eu queria muito linkar neste, mas, na correria do final de ano, ele acabou ficando em casa. Assim que sair eu coloco a referência.


Tem momento mais “família” que Natal? Casa cheia de gerações e gerações unidas por laços de sangue… e, muitas vezes, nada mais.

Digo nada mais porque, muitas vezes, o natal é a oportunidade que algumas pessoas covardes usam para aproveitarem-se da “santidade” do momento (ou seja, do fato de que nenhume filhe quer “estragar o natal da família brigando”), para cravar impunemente seus punhais adultistas no fígado de qualquer “criança” (leia-se: pessoa das gerações seguintes) que passa perto.

Pode ser que, muitas vezes, o que propicie tão despudorada encheção de saco seja o álcool que, muitas vezes, rega essas festas de fim de ano. Ou talvez, muitas vezes, esse álcool seja apenas uma desculpa, uma muleta etílica em que a pessoa grossa, crassa e bruta (ainda que de palavras aparentemente polidas) muitas vezes se apoia para se deliciar com o mal-estar que causa ao seu redor.

Muitas vezes, ainda há o estímulo do garoto-propaganda da festividade. Afinal, que dizer de um “Papai” de cabelos e barbas cuja brancura claramente evoca o peso de sua “respeitável e honorável” idade, que é bonachão, sorridente e evidentemente abonado, mas que só “presenteia” quem se comporta de acordo com as expectativas dele?

Supostamente é o momento do perdão, do amor, do carinho, da compaixão, da solidariedade. Mas, muitas vezes, isso é só no comercial da coca-cola e na novela que passa na TV. Porque, na família mesmo, muitas vezes, é dia de gritar com as crianças por elas serem crianças em volta da mesa decorada, esbravejar porque “ninguém ajuda em nada” (enquanto se faz questão de fazer tudo sozinhe e ridicularizar e criticar destrutivamente todo mundo que tenta fazer alguma coisa), falar mal de quem arrumou uma desculpa para não aparecer.

Muitas vezes, é o momento de salpicar implicâncias e aproveitar para servir, aqui e ali no meio da “felicidade” natalina, conversinhas (em tom de brincadeira ou não) sobre “a sua falta de rumo/ambição/vergonha na cara”, ou “quando vai arranjar um(a) namorado(a)” (sic), ou quando “vai largar daquele traste”, ou “quando vai me dar netos” (sic), ou “quando você vai voltar/começar a se cuidar?”, ou“quando você vai entender que tem que fazer faculdade de…/concurso para…/aula de…?” entre outros quitutes com esse mesmo tempero de “enquanto você não chegar aonde eu quero que você chegue, você, para mim, não terá chegado a lugar algum”, tudo recheado com doses cavalares de “depois de tudo o que eu investi em você” e “porque eu, na sua idade…”

É de causar indigestão até numa cabra, mas, mesmo assim, chega meia-noite e é só abraço e beijo e “feliz natal” e fingir que não doeu. Porque família é assim e escrotidão e passar mal fazem parte.

Só que não.

Desrespeito não faz parte. Ingerência não solicitada e cagação de regra não fazem parte. Falta de carinho não faz parte.

Não é porque alguém te trouxe ao mundo e/ou te criou que você tem o dever de aturar merda dessa pessoa para sempre. Eu, hoje, sendo mãe, entendo que esse tão alardeado “investimento” (estamos falando de empreendimentos ou de pessoas, afinal?) não é mais que a obrigação de qualquer pai, qualquer mãe. Que não é porque “tem tanta gente por aí que espanca e mata crianças” que então qualquer coisa que eu fizer que não seja isso já está bom.

Eu me dou hoje o presente de me afastar de quem me faz mal. Eu me dou hoje o presente de não me submeter a presenças tóxicas na minha vida. Eu me dou hoje o presente de não me forçar a sorrir quando me machucam. Eu me dou hoje o presente de não testemunhar pessoas que eu amo maltratando pessoas que eu amo.

Me dou hoje esse presente, como tento me dar esse presente todos os dias da minha vida. Digo tento porque sei bem que, muitas vezes, não é tão simples.

Muitas vezes, o nosso amor de criança, ainda vivo dentro de nós, a nossa vontade de ser amade, nos puxa de volta. E nos pegamos nos reaproximando e tendo que nos lembrar do quão cruéis essas pessoas podem ser para conseguirmos manter uma mínima distância saudável delas. E dói fazer isso, como dói apertar um calo para se manter acordade. E muitas vezes dói tanto que não conseguimos nos fazer fazer isso de novo. Muitas vezes, é um “dia especial” e a gente quer acreditar que pode abrir uma exceção.

Se há um presente que quero dar a mes filhes, este ano e todos os anos, é que de fato eles esperem ansiosamente pelo natal e todas as outras oportunidades de festa na nossa família. Que os sons e cheiros e cores natalinas provoquem neles não melancolia, culpa, temor e sensação de inadequação, mas o conforto da lembrança do meu amor por eles.

Feliz natal!