Talento, meritocracia, direito e justiça

Escrito en BLOGS el
anel-de-formatura-curso-direito-em-ouro-18k-750-14573-MLB4398116629_052013-F

A primeira lição – e a mais valiosa – que eu aprendi na faculdade de Direito foi que igualdade não é simplesmente tratar todo mundo igualmente.

Igualdade não é tratar todo mundo igualmente porque as pessoas são diferentes umas das outras. Não em valor, ou dignidade, mas em suas necessidades, circunstâncias pessoais e privilégios. Assim, igualdade, na verdade, é tratar igualmente quem é igual e desigualmente quem não é igual.

Suponhamos que eu entre numa quadra de basquete me propondo a premiar quem marcar uma cesta a partir da linha dos três pontos. E daí aparecem, para tentar o prêmio, pessoas baixas, altas, crianças, adultas, idosas, sem deficiência, com deficiência, algumas que nunca jogaram basquete na vida, outras que são jogadoras profissionais de basquete…

Seria justo que o prêmio fosse o mesmo para todas? E que todas tentassem ganhá-lo lançando a mesma bola nas mesmas condições?

Não é evidente que uma pessoa adulta, jovem, alta, sem deficiência e profissional do ramo terá muito mais facilidade em conseguir o prêmio que qualquer outra?

Será que, se uma pessoa que tem muito mais dificuldade para acertar a cesta consegue fazê-lo, a despeito de todos os fatores que operam contra ela, isso demonstra que todas as outras pessoas são igualmente capazes disso? Que as regras de “igualdade” do jogo são válidas?

Ou, pelo contrário, o próprio fato de ela ser uma exceção comprova que existe uma disparidade sendo exacerbada nesse jogo, favorecendo as pessoas que têm que empreender um esforço muito menor que outras para vencê-lo?

Mesmo que você diga “ah, mas quem é profissional treinou muito, talvez a vida toda, para ter essa facilidade”, não podemos ignorar que só o poder treinar, ter tempo e recursos, além de, provavelmente, o apoio da família e outros inúmeros fatores pessoais favoráveis para isso, é, em si, um privilégio, ou seja, algo longe de ser universalmente acessível.

Não é que ser profissional de basquete e ter mais facilidade para ganhar o prêmio em questão seja uma vergonha. Não é. É algo que a pessoa trabalhou para ser e tem todo o direito de se orgulhar de ter conquistado. No entanto, reconhecer isso não implica ignorar que não é necessariamente por falta de vontade, interesse ou preguiça que outras pessoas não o são.

Menos ainda pretendo aqui fazer uma catilinária contra o talento e a aptidão pessoais. É justamente o oposto disso, aliás, porque creio que apenas quando temos todes es competidores em real igualdade de condições é que vemos de fato vicejar o talento, uma vez que este é sufocado e não protegido pelos privilégios.

Quando paramos para pensar, uma competição assim seria uma covardia. As crianças, quando brincam entre si, têm o bom-senso de perceber quem dentre elas não está em condições de brincar de igual para igual (“café-com-leite”) e acham um jeito de brincar sem excluir ninguém. Já no mundo adulto teimamos em fingir que tudo bem meter todo mundo no mesmo balaio com as mesmas regras e gritar “se virem! Não aguenta, sai do jogo!”, como se isso significasse o mesmo para todes.

É por isso que a tal meritocracia não me desce. Porque ela é ilusória. Ela é uma foto que se tira ao final de uma corrida de obstáculos, coroando o “vencedor”, sem mostrar que, no percurso, o número e o tamanho dos obstáculos variaram de pessoa para pessoa.

Porque não basta “só querer e lutar para conseguir”, quando o meu querer (ou a minha necessidade, aliás, em muitos casos) e a minha luta podem ser infinitamente menores que os de outra pessoa e ainda sim eu levar o prêmio e ela não, simplesmente porque nós não partimos do mesmo ponto, em idênticas circunstâncias.

Seria muita hipocrisia da minha parte dizer que foi o mérito que me garantiu um assento na faculdade de direito quando eu JÁ NASCI com todas as circunstâncias favoráveis para essa conquista. Não é que eu não tenha mérito. Sim, eu estudei, sim, eu dei o meu melhor para chegar lá. Mas será mesmo que o meu melhor teria sido suficiente se eu não tivesse nascido na família e no estrato social em que eu nasci? Será que eu teria tido cabeça para estudar se eu tivesse tido que lidar, por exemplo, com a não aceitação da minha identidade de gênero? Com racismo?

Não consigo, aliás, deixar de pensar que melhor seria se todes nós pudéssemos estudar o que quiséssemos sem ter que nos engalfinhar por esse privilégio.

A segunda lição que eu aprendi na faculdade de Direito (e foi essa a que mais doeu) foi que Direito e Justiça não são a mesma coisa.