Tirania Infantil?

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[caption id="attachment_325" align="aligncenter" width="220"]http://pt.wikipedia.org/wiki/Tamagotchi http://pt.wikipedia.org/wiki/Tamagotchi[/caption] Li hoje, por infelicidade, mais um artigo que usa exemplos extremos de crianças mal-educadas por pais permissivos para pregar o adultismo. Mais um artigo que consulta “especialistas” que não comprovam suas afirmações com nenhuma evidência científica, como se bastasse o argumento de autoridade para validar o preconceito. Mais um artigo alarmista, que usa a previsão infundada de um futuro infeliz e desajustado para as crianças para promover a histeria controladora entre os pais. Mais um artigo que, machistamente, parte do princípio de que apenas à mulher cabe cuidar da criança e que, ainda mais machistamente, prega o adultismo para que a mulher consiga “segurar seu homem”. Mais um artigo que distorce o depoimento de uma mãe para usá-lo contra ela própria. Mais um artigo que contrapõe as crianças às pessoas que cuidam delas, como se fossem partes inconciliavelmente em guerra. Daí recebi o link de um texto curto e simples que expressa muito bem o meu sentimento neste momento, chamado "Não é conveniente ter filhos" de Gabi Sallit. É isso. Ter filhes não é conveniente. Não se encaixa na sua agenda. Não é cômodo e confortável para as pessoas ao seu redor. Mas, se nada mais - nenhuma das outras grandes decisões da sua vida - tem que ser, por que justamente isso teria? Não dá para ter filhes e continuar sendo a mesma pessoa e fazendo as mesmas coisas. Até porque o dia não passa a ter mais horas depois que eles vêm; parece, inclusive, ter menos, muito menos. Não são as crianças que nos privam de nós. Não é por culpa delas que, de uma hora para outra, não nos reconhecemos. Essa luta contra a tão arvorada quanto inexistente “tirania infantil” (como se fosse possível a alguém numa posição tão vulnerável ser tirânico!) não é só uma luta contra as crianças. É, no fundo, uma luta contra a vida, contra si mesme, imposta por uma sociedade que exige que tenhamos filhes ao mesmo tempo em que exige que nunca nos tornemos pais. O maniqueísmo estúpido que nos quer sempre absolutes (só mães ou só mulheres, só pais ou só homens, só cuidadores ou só pessoas) é o mesmo que não é capaz de ver a relação familiar senão como algo necessariamente opressivo, em que há sempre dominantes e dominades, nunca um equilíbrio. A verdade é que ninguém é, nem deve ser, só mãe ou pai, mas ser mãe ou pai em alguma medida fazem parte da pessoa que a gente se torna depois que nosses filhes surgem na nossa vida. Porque somente a completa indiferença nos manteria inalterados diante da enormidade desse acontecimento. Talvez o melhor conselho para quem deseja ter filhes seja justamente “você vai se transformar numa pessoa nova. Tente conhecer essa pessoa ao invés de ficar tentando combatê-la.” Quanto mais cedo a gente aceita a morte do nosso antigo eu, mais cedo passaremos pelo luto e mais cedo poderemos encontrar e aceitar o nosso novo eu. Ninguém fala para o amigo que vai embora da festa para dar comida para o cachorro que ele está sendo tiranizado; ninguém diz para a colega de serviço que não vai poder viajar porque não encontrou quem cuide de seu gato que ela agora deixou de ser mulher e passou a ser só dona de bicho. Entendemos de imediato que se trata de seres com necessidades especiais e uma capacidade de acomodação menor que a nossa. Que a nossa decisão de nos tornarmos guardiões dele implica esse cuidado, essa responsabilidade, essa consideração. Não é sacrifício, é algo que faz parte. Pode não ser fácil, mas não é um ato de altruísmo. Por que nos falta essa empatia com nosses filhes? Compreendemos o absurdo de exigir do bicho que deixe de ser bicho, mas continuamos a exigir que a criança que deixe de ser criança. E que a mãe que deixe de ser mãe.

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