Tiro no pé não mata

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Suponhamos que uma pessoa dê um tiro em seu próprio pé. A ferida não é fatal, mas ela tem que ir para o hospital. No caminho, um cara bate deliberadamente no carro que a transportava para lá e ela morre. Suicídio?

É verdade que ela só estava naquele carro, naquela hora, naquele lugar, porque deu um tiro no pé. Sim, ela participou da cadeia de eventos que culminou em sua morte. Mas não foi o tiro que, de fato, a matou. Fosse só pelo tiro, ela teria chegado ao hospital, sido atendida e saído da história viva. O que foi determinante para que ela morresse foi a atitude do cara que bateu no carro em que ela estava.

Claro que é válido questionar por que motivos uma pessoa atira no próprio pé, ou possui uma arma, etc; são questões que devem ser entendidas e saneadas. Mas, se a sociedade quiser evitar que mais casos como esse ocorram, ela deve se focar em coibir comportamentos como os desse indivíduo, que são o que de fato os causam. Afinal, não tendo acesso à vítima em questão, o cidadão simplesmente encontraria outra.

Dito assim, parece óbvio. Mas vejamos outras situações que eu considero similares, mas que costumam ser tratadas de uma forma muito diferente:

- Uma mulher é criada e educada num ambiente machista e misógino. Cresce com baixíssima autoestima e, por milhares de mecanismos psicológicos, desenvolve uma forte tendência a buscar compulsivamente a atenção e aprovação dos homens ao seu redor (tiro no pé). Eventualmente, acaba sobrando sozinha com um “amigo” que a estupra, se aproveitando do fato de que ela não consegue dizer “não” expressamente, apesar de sua recusa ser clara e seu desagrado ser evidente (cara que bate no carro).

- Uma mulher é criada e educada num ambiente machista e misógino. Cresce com baixíssima autoestima e, por milhares de mecanismos psicológicos, desenvolve uma forte tendência a buscar compulsivamente parceiros dominadores, agressivos, violentos (tiro no pé). Entra num relacionamento com um homem particularmente abusivo que a espanca (cara que bate no carro).

- Uma mulher é criada e educada num ambiente machista e misógino. Cresce com baixíssima autoestima e, por milhares de mecanismos psicológicos, desenvolve uma forte tendência a comportar-se de forma autodestrutiva, como embriagar-se até desmaiar em festas e baladas (tiro no pé). Eventualmente, é estuprada por um homem que se aproveita de seu estado de embriaguez (cara que bate no carro).

- Uma mulher é criada e educada num ambiente machista e misógino. Cresce com baixíssima autoestima e, por milhares de mecanismos psicológicos, desenvolve uma forte tendência a não questionar as autoridades com que se depara, especialmente se forem homens. Um dia, engravida e coloca-se nas mãos de um mau médico obstetra, não buscando informações que a protegeriam (tiro no pé). O tal médico a força (juntamente com seu bebê) a passar por uma cesariana desnecessária e indesejada, ou por um parto violento e traumático, cheio de intervenções desnecessárias (cara que bate no carro).

O que todas essas situações têm em comum? Bom, primeiro, são casos de violência de gênero. Sim, podem ocorrer com homens também. Só que a quantidade de homens que passa por esse nível de abuso e violência em situações semelhantes é ínfima em comparação.

Em segundo lugar, todas as vítimas retratadas são antes vítimas do machismo e misoginia do ambiente em que cresceram e vivem. Todas elas, em resposta a esse ambiente, desenvolveram comportamentos “tiro no pé” que as colocaram, digamos assim, em carros propícios a sofrerem batidas.

Em terceiro lugar, e o mais relevante para o que se pretende aqui ilustrar, são todos casos em que a vítima tem alguma participação na cadeia de eventos que culmina com a violência que é praticada contra ela. Mas, a exemplo do caso do tiro no pé, a participação delas NÃO É DETERMINANTE para o que lhes ocorre ao final.

Não haveria estupro se não houvesse o estuprador. Não haveria violência doméstica se não houvesse o agressor. Não haveria violência obstétrica se não houvesse o mau profissional do ramo. Como já foi dito, se o cara não consegue vitimar uma, ele simplesmente vai e encontra outra.

No caso de um assalto não se diria que a culpa é da pessoa que foi assaltada, apesar de ela, como ocorre nos exemplos dados, ter participado da cadeia de eventos que levou a que ele ocorresse (estando no local onde ele ocorreu, dando mostras de que tinha o que ser roubado, não sendo suficientemente vigilante, por exemplo). Mas muito se ouve que a mulher não pode se fazer de vítima, que mereceu, que “estava pedindo”. Outros ainda dizem que a mulher “tem que tomar o controle da situação”, parar de “esperar que alguém a salve”. Como se ela fosse ter poder de, já estando dentro de uma situação de agressão, repeli-la só com a força de sua vontade.

Ela pode ter dado um tiro no pé, mas não se violentou. O controle que ela poderia ter da situação acaba quando ela entra na casa do amigo mal-intencionado, quando ela toma a primeira pancada, quando ela perde a consciência depois de beber demais, quando ela dá entrada no hospital para parir. O que acontece a partir daí não está sob o controle dela e sugerir que estivesse é onerá-la com uma responsabilidade que cabe a outro indivíduo – ao indivíduo que, no controle real daquela situação, OPTOU por agir com brutalidade.

É válido questionar – e entender – o que levou a vítima à situação em que ocorreu a violência que ela sofreu. Por parte da própria vítima, para que consiga escapar de novamente encontrar-se ali, e por parte da sociedade, para que compreendamos a importância de desconstruir o machismo e a misoginia que geram os padrões de comportamento que colocam mulheres nessas situações. Mas, para diminuir a incidência desse tipo de violência, não adianta diminuir a disponibilidade de presas. Tem-se que focar nos predadores.

Uma coisa é reconhecer que há uma bagagem emocional que cria uma vulnerabilidade em relação a esse tipo de agressão. Outra coisa, muito diferente, é essa mesma bagagem emocional ser utilizada para justificar os atos dos agressores e para colocar culpa nas vítimas, perante a sociedade e a si mesmas, uma manipulação que transforma em principal e determinante o que, na verdade é só concorrente e facilitador para o resultado final.

Olhando-se no espelho, a mulher sente vergonha pela violência que ela SOFREU. É forçada ao silêncio e à negação, um processo muitas vezes ainda mais doloroso do aquilo por que ela já passou. Chega a inventar desculpas para seu agressor, defendê-lo (“eu não me fiz entender”, “eu que fiquei com ele” ou “eu que provoquei”, “eu não lembro de nada, talvez eu tenha consentido”, “ele estava só fazendo o trabalho dele, quem sou eu para julgar, não estudei medicina”), ou ouvir essas mesmas desculpas e defesas (não raro acompanhadas de acusações e ameaças) das pessoas que deveriam dar-lhe apoio, talvez até mesmo sua família, quando tenta romper esse silêncio.

Por que tanta falta de apoio à vítima, tanto apoio ao agressor?

Porque não se quer culpar a quem de direito. Ou porque sequer se vê o ato dele como algo culpável, porque se entende que estupro só é estupro se a mulher é "de bem" e está sóbria, gritando e chutando; violência doméstica só é violência doméstica se nunca houve um grito, um palavrão, uma única atitude abusiva por parte do parceiro (ou pior! Se a mulher estava de boca fechada, a casa limpa, a roupa lavada, a comida na mesa e a testa do agressor livre de quaisquer cornos, imaginários ou não); violência obstétrica é invenção de gente desocupada que quer se meter no trabalho dos outros. Porque se costuma pensar que todos esses agressores estavam só fazendo que lhes era “natural” diante das circunstâncias.

Porque se parte do princípio bizarro de que podridão humana e natureza humana são a mesma coisa.