Totalitarismo Invertido

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Totalitarismo invertido

Sheldon Wolin, The Nation, Tradução: Vila Vudu 1/5/2003

“Todos os impérios visam a explorar povos e territórios sob seu controle, mas os EUA são império de tipo diferente: os EUA raramente governam diretamente territórios estrangeiros por muito tempo, embora conservem lá suas bases militares (“lily pads”). O poder dos EUA é “projetado” em intervalos irregulares sobre outras sociedades, mesmo quando não é institucionalizado. O poder dos EUA tende a ser indireto, assume a forma de vaga “influência”, de “pressões” ou de propina. As principais preocupações dos EUA são militares ou econômicas (acesso a bases estratégicas, a mercados, ao petróleo). Quando os políticos consideram necessário ou útil, necessidades domésticas são subordinadas ao que ordenem as estratégias globais ou as necessidades reais ou pressupostas dos parceiros empresariais corporativos da ‘superpotência’” (Sheldon Wolin, Democracy Incorporated: Managed Democracy and the Specter of Inverted Totalitarianism, material de divulgação de conferência a ser realizada dia 17/5/2011. Ver também Lannan).

A guerra no Iraque de tal modo monopolizou a atenção pública que obscureceu a mudança de regime que está acontecendo aqui mesmo, nos EUA. Talvez tenhamos invadido o Iraque para levar para lá a democracia e tirar de lá um regime totalitário, mas, no processo, tudo faz crer que nosso próprio sistema esteja andando rapidamente em direção a se tornar sistema totalitário, cada vez menos democrático.

A mudança doméstica, cá nos EUA, se vê claramente na repentina popularidade que ganharam dois termos, que raramente se ouviam antes no sistema político norte-americano: “império” e “superpotência”. Esses dois termos sugerem, ambos, que um novo sistema de poder, concentrado e expansionista, já existe entre nós e suplantou o anterior.

“Império” e “superpotência” simbolizam acuradamente a projeção do poder dos EUA para além fronteiras, mas, por isso mesmo, obscurecem as consequências do processo para os norte-americanos.

O absurdo se torna mais visível quando se ouve falar da “Constituição do império dos EUA” ou dos EUA como “superpotência democrática”. Nos dois casos as expressões soam falsas, porque “Constituição” significa limitação de poderes; e impérios não são regidos por Constituições; e “democracia” significa para a maioria da humanidade o ativo envolvimento dos cidadãos nas ações do governo e a exigência de que o governo preste contas aos cidadãos; portanto, não pode haver superpotência democrática e, além do mais, imperial. “Império” e “superpotência” são palavras que falam de não respeitar limites e de fazer encolher a cidadania.

O sempre crescente poder do Estado e declínio do poder das instituições previstas para controlar o Estado são coisas que vêm fermentando já há algum tempo. Ao deixar de ser genuíno partido que faz oposição, os Democratas pavimentaram o caminho até o poder, como partido sedento de poder para também usá-lo para promover o império dos EUA além-mar e promover o poder das corporações, em casa.

Assim, agora, os elementos necessários estão afinal implantados: legislativo fraco; sistema legal ao mesmo tempo complacente (para uns) e repressivo (para outros); sistema partidário no qual os partidos, situação ou oposição, só fazem trabalhar para recompor o sistema partidário (‘reformas’ e ‘reformas’ que nada reformam) de modo a que mais e melhor possa servir aos ricos, aos bem relacionados e às empresas, ao mesmo tempo em que os pobres são abandonados, desamparados, entregues ao desencanto com a política e ao desespero; e, ao mesmo tempo, deixando as classes médias penduradas entre o desemprego e delírios de fantásticas recompensas, tão logo a economia ‘se recupere’.

Ano passado, no impasse entre governo e oposição no Congresso nos EUA, ao contrário do que noticiou a mídia, não se tratou de oposição entre o governo e trabalhadores inocentes, beneficiários de favores do Estado ou turistas – por mais sinceros e legítimos que sejam os padecimentos de todas essas categorias. Tratou-se ali, sim, do amplo esquema de poder da nação.

O impasse no Congresso, em 2002, foi, de fato, ataque direto ao princípio democrático pelo qual, numa democracia, o governo pertence ao povo. E o povo tem meios legais para derrubar qualquer governo, pode alterar o sistema de apresentar emendas, e pode resistir e desobedecer a governos despóticos. O impasse, que paralisou o governo dos EUA só mostra o ritmo verdadeiramente apavorante com que a despolitização está sendo promovida e a profundidade (abissal) à que a alienação já chegou.

A consequência combinada da contrarrevolução Republicana, o colapso do liberalismo convertido em centrismo e o ataque aos funcionários públicos, a Washington e ao governo é nada menos que o descrédito do princípio fundamental de uma sociedade democrática: que o poder político e o governo existem para atender às necessidades da maioria, não para fazer o que a minoria entenda como mais desejável.

O crescente poder do estado e o poder decrescente das instituições que existem para controlar o poder do estado é processo em andamento já há algum tempo. O sistema de partidos é exemplo claro. Os Republicanos surgiram como fenômeno único na história dos EUA, de partido furiosamente doutrinário, fundamentalista, antidemocrático, que fala como se fosse maioria. Na medida em que os Republicanos se foram tornando cada vez mais ideologicamente intolerantes, os Democratas encolheram-se até o centrismo, pregando o fim das ideologias. Ao deixar de ser genuíno partido de oposição, os Democratas seguiram a rota fácil de partido interessado, sobretudo, em promover o império americano além fronteiras e o poder das grandes empresas, em casa. Não se deve esquecer que partido fortemente ideológico, intolerante e fundamentalista, com base de massas, sempre foi elemento crucialmente importante em todos os regimes que, no século 20, aspiraram ao poder autoritário absoluto.

As instituições representativas já não representam os eleitores. Em vez disso, entraram em curto-circuito, profundamente corrompidas por um sistema institucionalizado de propinas que as tornaram sensíveis só aos interesses dos grupos de poder, das grandes empresas, da faixa mais rica dos cidadãos. E as cortes de justiça, por sua vez, quando não são pau para toda obra a serviço do poder das corporações, são consistentemente solidárias, só, às chamadas “exigências da segurança nacional”.

As eleições passaram a ser antieventos pesadamente subsidiados que tipicamente só atraem menos da metade dos eleitores cuja informação sobre política nacional ou internacional é filtrada – de fato, é censurada – por uma mídia dominada pelas grandes empresas. Os cidadãos são manipulados e mantidos sob eterna tensão pela divulgação diária, pela mídia, de ondas de crimes e de atentados, apresentadas como trabalho de terroristas; por ameaças mais ou menos veladas de juízes e procuradores; e pelo medo eterno, sem alívio, do desemprego. Ainda mais crucialmente importante aqui não é o aumento do poder do governo, mas o inevitável descrédito das limitações constitucionais e dos processos institucionais, o que leva os cidadãos a descrer do poder que, em tese, seria seu; desestimula as práticas da cidadania militante; e torna os cidadãos politicamente apáticos.

Essa avaliação, não tenho dúvidas, será desacreditada também, por alguns, como alarmista. Mas insisto. Para mim, o sistema político emergente hoje nos EUA é, de fato, um “totalitarismo invertido”.

Com “invertido”, quero dizer que, embora o sistema político hoje emergente nos EUA e seus operadores partilhem com o nazismo a aspiração por poder ilimitado e o expansionismo mais agressivo, métodos e ações aparecem invertidos, de cabeça para baixo e pés para cima.

Por exemplo, na Alemanha de Weimar, antes de os nazistas tomarem o poder, as “ruas” eram dominadas por gangues orientadas por pensamento totalitário, e o pouco de democracia que havia estava concentrada no governo. Nos EUA, contudo, só há democracia nas ruas ou, pelo menos, a democracia viva que há está nas ruas – e o maior perigo vem de um governo sobre o qual há cada vez menos controle social.

Outro exemplo da inversão: sob governo nazista, não havia nenhuma dúvida de que os “grandes negócios” eram subordinados ao regime político. Nos EUA, ao contrário, é absolutamente visível, há décadas, que o poder das grandes corporações tornou-se tão dominante, no establishment político, sobretudo no Partido Republicano, e é tão dominante sobre o poder político, que se pode pensar, sim, em perfeita inversão formal em relação aos nazistas. Ao mesmo tempo, é poder corporativo, representante da dinâmica do capitalismo e do poder sempre em expansão tornado possível pela integração da ciência e da tecnologia com a estrutura do capitalismo, que produz o ímpeto totalitário que, sob os nazistas, apareceu em noções ideológicas como o Lebensraum[1].

Contra minha posição, não faltará quem diga que não há equivalente nos EUA [não havia, conhecido, em 2003; em 2011, claro, já se sabe que há (NT)]do regime nazista de tortura, campos de concentração ou outros instrumentos de terror. Mas é preciso lembrar que, na maior parte, o regime de terror nazista não se aplicava de modo geral a toda a população; que visava, isso sim, a promover um certo tipo de medo difuso – o medo da tortura – que servia bem para manipular a população. De fato, os nazistas queriam sociedade mobilizada, pronta a apoiar o estado de guerra permanente, o expansionismo e o sacrifício da nação.

Se o totalitarismo nazista visava a dar às massas a sensação de poder coletivo e de força, Kraft durch Freude (“A força, pela alegria”), o totalitarismo invertido visa a promover uma sensação de fraqueza, de futilidade coletiva.

Se os nazistas queriam sociedade continuamente mobilizada que não apenas apoiaria o regime sem protestar e entusiasticamente votaria “sim” em plebiscitos periódicos, o totalitarismo invertido quer sociedade politicamente desmobilizada que nem se interessa por votar.

Basta lembrar o que disse o presidente Bush imediatamente depois dos eventos horríveis do 11/9: “Vamos nos unir, consumir e viajar”, disse ele, aos cidadãos ansiosos. Apesar de já ter incorporado o terrorismo a uma “guerra”, o presidente não fez o que fazem líderes democráticos em tempos de guerra: mobilizar os cidadãos, alertar para os sacrifícios à frente e exortá-los a unir-se em algum “esforço de guerra”.

Em vez disso, o totalitarismo invertido passou a usar os meios que tem para promover o medo generalizado, não só mediante “alertas” repentinos, mas também mediante anúncios periódicos de células terroristas recentemente descobertas, de prisões de figuras sinistras, do tratamento violento infligido aos inimigos na Ilha do Diabo da baía de Guantánamo, ou de métodos de interrogatório perversos, divulgação que, na atmosfera de medo generalizado, gera ainda mais medo, porque os cidadãos já convivem com o desemprego, os cortes, as demissões sempre iminentes, ou a redução das aposentadorias e serviços públicos de saúde. O sistema político dominado pelas corporações não faz outra coisa além de ameaçar com a privatização: da Seguridade Social, dos serviços de saúde, de tudo que, por pouco que seja, ainda são os recursos com que os pobres contam para sobreviver.

Com tantos instrumentos para promover a insegurança e a dependência, o totalitarismo invertido ainda usa sistema de justiça criminal extremamente punitivo, serve-se da pena de morte e é elitista, marcadamente discriminatório contra os sem poder.

Todo esse sistema é propagandeado por mídia servil e cada vez mais concentrada; por universidades integradas às empresas e aos interesses de seus mecenas corporativos; por máquina de propaganda institucionalizada em think-tanks milionários e fundações conservadoras; mediante a cooperação cada vez mais íntima entre as polícias locais e as agências nacionais que existem para identificar terroristas, dissidentes domésticos e, em geral, todos os ‘diferentes’, sempre suspeitos.

O que está em processo portanto é nada menos que uma tentativa para transformar uma sociedade toleravelmente livre, em variante dos regimes mais extremistas do século passado. Nesse sentido, as eleições nacionais de 2004 nos EUA manifestam uma crise no significado original do próprio sistema eleitoral, um ponto de virada. O que os cidadãos precisam entender é: virada, sim, mas... em que direção?[2]

[1] Entre 1921 e 1925 Adolf Hitler desenvolveu a teoria de que a Alemanha careceria de Lebensraum (“espaço vivo”) para conseguir sobreviver. A convicção de que esse espaço teria de ser conquistado ao leste, especificamente da Rússia Soviética, modelou toda sua política a partir de 1933 (NTs, com informações de BBC, de onde se extraiu também o cartaz de propaganda dos nazistas alemães aí mostrado).

[2] Nas eleições presidenciais de 2004, Bush foi reeleito, contra John Kerry, então senador Democrata por Massachusetts. A política exterior foi tema dominante da campanha eleitoral, sobretudo a “Guerra ao Terror” de Bush e a invasão do Iraque, em 2003. Foi eleição outra vez, como em 2000, cercada de discussões e controvérsias. Só se conheceu o vencedor no dia seguinte, depois que Kerry decidiu não contestar a vitória de Bush no estado de Ohio. Ohio tinha, naquele caso, número suficiente de votos eleitorais para determinar quem seria eleito. Kerry e o presidente do Comitê Nacional dos Democratas Howard Dean haviam declarado que havia irregularidades na votação em Ohio e que, se fossem consideradas, a chapa Democrata seria eleita. De fato, a controvérsia foi menor em 2004 do que na eleição anterior, em 2000. De uma para outra eleição, só três estados mudaram de partido: New Mexico e Iowa votaram com os Democratas em 2000, e com os Republicanos em 2004; New Hampshire votou com os Republicanos em 2000, e com os Democratas em 2004. No Colégio Eleitoral, Bush recebeu 286 votos, e Kerry, 251. O candidato a vice na chapa de Kerry, John Edwards, que disputara eleições primárias, recebeu um voto para presidente, de um eleitor ‘distraído’, de Minnesota. Tudo leva a crer que tenha sido apenas engano, porque o mesmo eleitor votou também, corretamente, em Edwards, para vice-presidente (NTs, com informações da Wikipedia).

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