Acrísio Sena: ASSÉDIO SEXUAL NOS TRANSPORTES PÚBLICOS

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ASSÉDIO SEXUAL NOS TRANSPORTES PÚBLICOS Uma triste realidade global... Por Acrísio Sena* Quando levantei a questão do assédio sexual nos transportes públicos em Fortaleza não tinha a real dimensão que isso representa um problema cotidiano na vida das mulheres. Infelizmente, a sociedade em geral não tem noção do que isso significa para a vida delas. E é comum encontrar pessoas que acham este tipo de coisa normal. Fui percebendo aos poucos que, ao falar sobre o assunto, em qualquer ambiente, quase sempre uma mulher dizia: “já passei por isso”.  Foi então que comecei a pesquisar e descobrir que se trata de uma realidade cruel e que atinge milhões de cidadãs todos os dias. Infelizmente, o fato é fruto de ideias e práticas machistas que reverberam numa sociedade ainda tida como patriarcal. Trata-se de um problema que está se tornando, lastimavelmente, universal. Do México à Índia, do Japão à Tailândia, o sexo feminino é abusado e até violentado quando viaja em ônibus, trens e outras modalidades de transporte público. As estimativas apontam que cerca de 35% das mulheres em todo o mundo sofreram violência sexual. A alguns estudos nacionais mostram que mais de 90% das mulheres foram assediadas sexualmente. O assédio sexual nos transportes públicos faz parte do dia-a-dia das mulheres no Nepal. Na França, 87% já foram assediadas nos transportes públicos. No México, 87,7% se sentem inseguras quando viajam em transporte público. Dois terços das indianas também dizem ter vivenciado tal agressão. Cerca de metade das japonesas já tiveram pelo menos uma dessas experiências e o problema também foi relatado na Indonésia, Egito, Austrália, Reino Unido, Espanha, EUA e Quênia, entre outros países. No Brasil, mais de 86% já foram vítimas de assédio em espaços públicos, segundo levantamento da ONG ActionAid. O transporte público é onde elas mais têm medo de sofrer abordagens indesejadas, de acordo com a pesquisa, realizada em 2006. Outra pesquisa do Datafolha, de outubro de 2015, chegou à mesma conclusão: 35% das mulheres entrevistadas que usam o metrô, o ônibus ou o trem todos os dias já sofreram algum tipo de assédio. O percentual é maior que as abordagens na rua (33%). O transporte público, na maioria dos casos insuficiente para a demanda existente, se torna um espaço propício ao assédio sexual, uma vez que o confinamento gerado pela lotação, mesmo que transitório, garante aos agressores a proximidade das mulheres com certa dose de disfarce. Os tipos de violência em transportes públicos variam de acordo com o comportamento e as intenções dos agressores. O que tem de comum é que são sempre atos ofensivos, como toques desnecessários, pressionamento contra a mulher, toque nos seios, encoxamento, beliscões, comentários sexuais, masturbações, retirada de fotografias sem seu consentimento e tantas outras formas. Apesar dos altos níveis de ocorrência, o assédio sexual permanece silencioso. As mulheres tendem a não denunciar a maioria das ocorrências, às vezes em meio a suposições ou preocupações de que não seriam levadas a sério.  Muitas delas temem sofrer mais constrangimentos. Outras acham que o que aconteceu com elas não foi suficientemente grave, ou não tem certeza se foi um crime ou apenas um “comportamento desagradável”. Assim, agem simplesmente se afastando do agressor, com sensação de estar resolvendo o problema. Uma pesquisa da Transport for London, realizada no ano passado, revelou que 15% das mulheres e meninas experimentaram comportamentos sexuais indesejados na rede de transporte de Londres, mas 90% não o relataram. Para quebrar o silêncio, nos últimos dois anos, o Projeto de Sexismo Diário vem coletando mais de 80 mil histórias de mulheres comuns que vivem em todo o mundo vítimas de assédio sexual.  Milhares dessas histórias referem-se a incidentes ocorridos na rede de transporte, com casos que variam de jovens que são fotografadas contra sua vontade, para mulheres testemunhando a masturbação pública. Pesquisas em boa parte do mundo mostram os efeitos devastadores do assédio sexual nos transportes públicos. A agressão sofrida pode deixar a mulher abalada, intimidada, confusa, assustada, traumatizada, com sentimento de culpa e até com sérias dificuldades de continuar suas rotinas. Algumas chegam a abandonar os estudos, o trabalho e outras atividades que dependam de transporte público para se locomover. A resposta a este problema mundial, em alguns casos, tem sido a introdução de transportes exclusivamente femininos que, literalmente, colocam as mulheres fora do alcance físico de potenciais agressores - pelo menos durante o período de viagem. Os ônibus exclusivos podem ser encontrados no México, Tailândia, Paquistão e Guatemala, enquanto cidades do Egito, Índia, Irã, Indonésia, Filipinas, México, Rússia, Malásia e aqui no Brasil oferecem vagões de trem e metrôs. A medida é paliativa e não enfrenta a raiz do problema. No mínimo deveria suscitar uma reflexão: segundo estatísticas as mulheres são as que mais utilizam o transporte público na maioria das áreas metropolitanas ao redor do mundo. Portanto, o “lógico” seria que a minoria fosse colocada no vagão ou ônibus exclusivos. Por outro lado, fica a sensação de que a mulher está sendo responsabilizada apesar de ser vítima. Além disso, a segregação não resolve as questões fundamentais que desencadeiam o assédio. O assédio sexual é considerado quase que um comportamento “natural” masculino e precisamos transformar essa noção equivocada e nociva à sociedade. Precisamos enfatizar que nem todos os homens assediam mulheres ou são abusadores. Não se trata de uma luta das mulheres contra os homens e sim de toda a sociedade contra determinados tipos de comportamentos que precisam ser banidos. Em outras palavras, a segregação perpetua uma cultura que culpa as vítimas e molda todos os homens como ameaças para as mulheres.  É uma resposta gentil que reforça a dinâmica de poder e apaga a complexidade da identidade de gênero. Nenhuma forma de solução física segregadora resolverá o problema até que as atitudes e comportamentos sociais sejam encarados com profundidade. Infelizmente poucas agressões de assédio são relatadas, poucos relatos resultam em ações judiciais e poucos processos resultam em condenações.  Portanto, é necessários agirmos em várias frentes ao mesmo tempo para atacarmos o problema na sua totalidade. As estratégias para combater o assédio nos transportes públicos provavelmente precisarão combinar múltiplos elementos. Além de uma ampla campanha de conscientização para encorajar os relatos e denúncias, devemos realizar um amplo processo de capacitação de profissionais das diversas áreas envolvidas (empresas de transportes, polícia militar, polícia civil, guarda municipal entre outros órgãos públicos). Esses profissionais podem e devem adquirir habilidades e conhecimentos de como acolher as vítimas em situações ameaçadoras, como investigar sem depender exclusivamente do testemunho da vítima, não exigir que as vítimas repitam várias vezes suas declarações e não as exponham a processos públicos vexatórios que as façam passar por mais constrangimentos. Segundo relatos que li, situações como estas são comuns e desencorajam cada vez mais às vítimas a buscarem ajuda. Devemos ainda fortalecer o apelo por uma legislação adequada que possa enquadrar esse tipo de crime e punir exemplarmente os criminosos. Importante salientar que dois projetos tratando do tema foram aprovados, consensualmente, no último dia 27 de setembro, pelo Senado, e seguem agora para votação na Câmara dos Deputados. O primeiro texto aprovado é do senador Humberto Costa (PT-PE). O PLS 740/2015 cria a figura do crime de constrangimento ofensivo ao pudor em transporte público. A pena é de reclusão de dois a quatro anos para quem constranger, molestar ou importunar alguém de modo ofensivo ao pudor, ainda que sem contato físico, atentando-lhe contra a dignidade sexual. Se a conduta ocorrer em transporte coletivo ou em local aberto ao público, está previsto o aumento da pena, de 1/6 até 1/3. Já o PLS 312/2017, da senadora Marta Suplicy (PMDB-SP), define como crime de molestamento sexual “a conduta de constranger ou molestar alguém à prática de ato libidinoso diverso do estupro”. Se o ato for cometido mediante violência ou grave ameaça, a pena recomendada é de três a seis anos de reclusão. Caso não haja violência ou grave ameaça, independentemente de contato físico, a pena cai para dois a quatro anos de reclusão. A Audiência Pública que realizamos no último dia 17 de outubro sobre o tema do assédio sexual nos transportes públicos de Fortaleza apontou para a necessidade de desenvolvermos iniciativas práticas no sentido de enfrentarmos esse problema cada vez mais crescente em nossa cidade. As instituições e órgãos públicos presentes propuseram a instituição de um fórum (ou grupo de trabalho) com objetivo de analisar as diversas propostas apresentadas durante a audiência e definir os passos seguintes. Acredito que seja possível avançarmos na perspectiva de um amplo movimento constituído pelos poderes públicos (Executivo, Legislativo e Judiciário), a sociedade civil organizada e as empresas e órgãos ligados aos sistemas de transporte público de Fortaleza. Iniciativas importantes estão em curso em várias cidades do Brasil e do mundo. Em seguida apresento algumas sobre as quais podemos nos referenciar. Londres - Em 2013, a Polícia Britânica, em parceria com a Transport for London, lançaram uma campanha com o objetivo de eliminar os abusos sexuais nos transportes públicos após uma pesquisa apontar que 90% das pessoas não relatavam agressões sexuais ocorridas. O resultado é que o número de relatos/denúncias anuais duplicou, de 1.023 em 2013 para 2.087 em 2015, apesar de um elevado grau de subnotificação. O número de pessoas presas por infrações sexuais na rede de transportes de Londres também aumentou em mais de um terço em apenas um ano. Foram 554 suspeitos presos em 2015/16, em comparação com 406 nos 12 meses anteriores, segundo a Transport for London. Quando a campanha foi lançada, sua mensagem era dirigida às vítimas, encorajando-as a denunciar suas experiências de agressão sexual. Mas a sua última edição, lançada no início deste ano, manda uma mensagem direta aos agressores, mostrando que poderão ser capturados e que enfrentarão a justiça. Na Austrália, temos outro exemplo importante. A organização Plan International e a companhia Crowdspot criaram uma ferramenta on-line, chamada Free to Be, que mapeia as denúncias de abuso pelas ruas da capital. A instituição envia à polícia local e às empresas de transporte público todas as informações coletadas sobre as regiões em que ocorreram os casos de assédio. Na Cidade do México, a ONU Mulheres e o Governo local lançaram em março deste ano campanha denominada #NoEsDeHombres. O objetivo é “desnormalizar” a violência sexual contra as mulheres em transportes públicos e promover uma nova masculinidade. A campanha foi dividida em duas fases. Na primeira fase da campanha, o Metrô da Cidade do México serviu como cenário de duas experiências sociais, capturadas em vídeos, nas quais alguns homens foram expostos a situações semelhantes aos assédios que as mulheres são vítimas (o detalhe é que, embora os homens que aparecem nos vídeos sejam atores, eles não sabiam o que aconteceria com eles, então as reações são autênticas). Até agora, as peças audiovisuais geraram mais de 10 milhões de visualizações nas redes sociais e atingiram mais de 108 milhões de usuários pelo Twitter. A segunda fase da campanha busca conscientizar sobre o assédio sexual sofrido diariamente por mulheres e meninas nos transportes públicos, bem como desencorajar os homens de exercerem esse tipo de comportamento publicando possíveis sanções em casos de assédio sexual. Esta fase consiste na difusão de uma série de materiais gráficos colocados em diferentes espaços públicos no metrô, nos ônibus, sob viadutos, entre outros. Em São Paulo está em curso a campanha “Juntos podemos parar o abuso sexual nos transportes”, coordenada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, que quer promover uma mudança cultural que estimule vítimas de abuso sexual nos transportes e/ou pessoas que presenciam algum episódio de violência a denunciarem os agressores e, consequentemente, inibir a prática desse tipo de crime. Foram afixados cartazes nos trens da CPTM e do Metrô e nos ônibus da EMTU com mensagens alusivas ao tema, além de postagens nas redes sociais das empresas. Entre as instituições que participam da campanha estão o Tribunal de Justiça, Ministério Público e Governo Estadual, além da Secretaria de Estado dos Transportes Metropolitanos, CPTM, Metrô, EMTU, Estrada de Ferro Campos do Jordão (EFCJ), ViaQuatro, Prefeitura de São Paulo, SPTrans, Ordem dos Advogados do Brasil, Polícia Militar, Polícia Civil, Secretaria da Segurança Pública e Secretaria Municipal de Mobilidade e Transportes de São Paulo. Antes do lançamento, foram realizados seminários de sensibilização direcionados aos funcionários das empresas de transporte, para prepará-los para o atendimento às vítimas. Outro aspecto importante da campanha são programas de reeducação direcionados aos abusadores, uma vez que apenas a punição nem sempre é suficiente para uma mudança de conduta. Conclusão À medida que procuramos mais exemplos para reduzir, de forma sustentável, o assédio sexual nos sistemas de transporte e nos diversos espaços públicos, mais nos aproximaremos da possibilidade de êxito na busca de erradicação dessa prática que está preocupando sociedades do mundo inteiro.   *Acrísio Sena é historiador e Mestre em Educação pela Universidade Federal do Ceará. Atualmente é vereador pelo PT na cidade de Fortaleza