Adeus, Zilda.

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Hoje é um dia de luto. Luto para todos os humanistas.

No Brasil o Plano Nacional de Direitos Humanos III corre riscos de perder os avanços que representa, porque a ala mais conservadora da sociedade -- parcela da Igreja Católica, parcela dos militares e parcela da mídia golpista -- unem-se e ganham eco nos principais meios de comunicação concentrados nas mãos de poucas famílias que deturpam os princípios fundamentais que o plano carrega.

É vergonhoso assistir a este espetáculo de barbárie, desumano, de desinformação deformada, que expõe o que a cultura brasileira conservadora tem de pior: seus preconceitos contra os pobres, os negros, os homossexuais, as prostitutas, os indígenas os sem terra...  que expõe a nossa veia autoritária que nega às pessoas uma vida plena de direitos. Vergonhoso querer negar aos brasileiros o direito à verdade de um tempo tão sombrio onde a truculência, a tortura e a exceção foram a regra.

Como se tudo isso não bastasse  hoje, pela manhã, soube da trágica morte da Dra. Zilda Arns no terrível terremoto que abateu milhares de vidas no Haiti e afetou cerca de 3 milhões de pessoas em um país já tão destruído.

Soube também que um amigo de luta pela igualdade racial está enfrentando um câncer, a doença deste século e que não poupa aqueles que dedicam sua vida contra as injustiças. As tragédias não têm ideologia.

Comecei meu ativismo nas comunidades de base em fins da década de 1970 e princípios dos anos 1980. Convivi com padres humanistas que me emprestavam livros e tinham a paciência das pessoas sabidas em ouvir os mais jovens, orientá-los e ajudá-los na dolorida travessia da puberdade ao mundo adulto. Foi na igreja que fizemos reuniões contra a ditadura militar e em solidariedade aos mais pobres e necessitados e na luta  por um planeta sustentável. Fiz parte da pastoral da juventude, quando a igreja estava respirando o sangue novo da teologia da libertação.

Foi também no contato com padres humanistas que me dei conta de que a dura realidade poderia ser transformada. Não tenho mais a fé genuína que tinha na adolescência, mas as lições humanistas permaneceram. O Cristo que me foi apresentado era um Cristo transformador, rebelde contra as injustiças, sempre ao lado dos mais pobres, não para conformá-los, mas para libertá-los para que lutassem contra a exclusão. Foi na pastoral da juventude que conheci a pastoral da criança.

Sempre acompanhei o trabalho de Zilda Arns que usou sua experiência profissional para junto com Dom Geraldo Majella combater a desnutrição infantil. Bons projetos são capazes de transformar as realidades mais duras: em 25 anos  de existência a Pastoral da criança, presente em quase todos os municípios brasileiros, atendeu quase dois milhões de crianças e cerca de 1,5 milhão de famílias pobres.

Várias das práticas empreendidas pelos milhares de voluntários da Pastoral da Criança inspiraram projetos transformadores em prefeitos humanistas como a do médico Davi Capistrano, prefeito do primeiro governo petista de Santos.

Um destes projetos era o médico de família, que realizava visitas domiciliares,  humanizava os enfermos, orientava as famílias e promovia uma recuperação mais rápida, diminuindo drasticamente o risco de infecção hospitalar.

Acompanhei de perto essas práticas na casa de minha mãe. Meu irmão Coca que devido a imensidão de remédios que toma e a falta de exercícios pela sua condição de cadeirante vivia e vive acometido de infecções. Estava grávida de minha filha, visitando a família em Santos e vi, várias vezes, como se dava a visita do médico de família. Um primor! Poucas vezes me senti tão cidadã como naqueles dias: delicadeza, atenção, competência, cuidados, médicos e auxiliares sem ranços, sem discurso competente imposto pelo saber inacessível aos pobres mortais.

Davi Capistrano e Zilda Arns, ambos médicos, ambos humanistas, ambos defensores dos direitos humanos, ambos militantes da saúde pública no país, lutadores pela implementação do SUS e que provaram que a medicina humanista é capaz não apenas de salvar vidas, mas de ampliar a cidadania.

Eles se foram cedo demais para tanta luta que temos pela frente, mas suas trajetórias nos deixam preciosas lições inspiradoras. Minha homenagem a esses seres de luz.