Ainda e pela última vez, o caso de nossa 'Madelaine'

Escrito en BLOGS el
No Brasil 400 mil crianças por ano são feridas pelos seus responsáveis, dessas 4 mil não resistem às agressões. Socialmente fazemos pouco pra diminuir essa estatística, muito embora tenhamos verdadeira ojeriza ao infanticídio.
Não sei se por isso ou se porque os dados das investigações policiais espetacularizados pela mídia como se fosse um clássico Corinthians e Palmeiras incomodam profundamente pessoas como eu e vários críticos que consideram que esta tragédia familiar deve ser tratada como ela é: uma tragédia familiar, mas eu passei a desejar com toda a força de meu coração que ao menos desta vez o pai e a madrasta não sejam culpados.

Ando incomodada com as incongruências das investigações divulgadas hora a hora em todas as mídias e algumas perguntas me surgem: se esta menina sangrou tanto assim no carro a ponto de usar uma frauda para estancá-lo (inutilmente, na medida que há pingos de sangue no trajeto do lobbie do apartamento até a janela do quarto dos irmãos), por que não há uma gota de sangue no elevador e na camiseta do pai, que é acusado de ter transportado a filha e a atirado pela janela?

Muitas testemunhas afirmam em depoimentos divulgados na mídia que ouviram a menina chamar pelo pai dela (como se pedindo socorro e outras como se fosse apelo para que a agressão parasse), entretanto, as últimas notícias são de que a menina entrou sangrando e desfalecida no apartamento, pois a hipótese é que foi ferida no carro (asfixia). Expliquem-me como uma pessoa desfalecida poderia pedir socorro? Os fatos ao menos para mim não se encaixam.

As fibras da tela de proteção cortada não poderiam ter aderido a sua camiseta quando este em desespero por não ver a filha e perceber a tela cortada, colou-se nela pra olhar embaixo?

E os primeiros testemunhos sobre arrombamento em um sobrado que dá para os fundos do prédio dos Nardoni na noite do crime, foi feito perícia lá? Ouviram o pedreiro e a vizinha que diz ter ouvido barulho neste sobrado em construção que foi arrombado?

Por outro lado que raio de ferimento é esse e por que foi provocado no carro?

Por que um pai que durante cinco anos não apresentou nenhum histórico de violência (caso contrário a mãe da menina que não é omissa, teria tomado providências) faria algo tão torpe, tão cruel, tão inominável?

Fui obrigada a tentar compreender esse caso, pois todos, sem exceção, desde os que se deixaram levar pela comoção nacional e os críticos a essa comoção e, especialmente a mídia, não me deixam ficar impassível a ele.

Minha mãe, por exemplo, anda indignada comigo por eu tentar acalmar os ânimos e pedir pra ela ver outra coisa na tevê, minha irmã idem. Minha mãe é nordestina, migrante, voltou pra escola aos 63 anos, é uma pessoa muito corajosa, consciente e combativa e me disse nervosa ao telefone, 'vc defendeu esses sujeitos, eu não posso crer, se eles fossem linchados eu seria a primeira a dar uma paulada na cabeça daquele miserável e daquela miserável'. Minha irmã, também mãe de uma pequena na idade da Isabella, com curso superior que fala italiano e alemão também perdeu a razão. Minha empregada, mãe de três filhos me olha com raiva e desconfiança, já chorou falando do tema.

Detalhe, eu não defendi ninguém, apenas não acusei e estou aguardando o final dessa tragédia humana, dando o benefício da dúvida que todos sem exceção merecem até que se prove a culpa.

Mas, nenhuma dessas mulheres são loucas ou possuem um viés mórbido em seu caráter. Com toda certeza a cobertura jornalística potencializou a revolta popular, mas há outros aspectos de fundo que o explicam, dentre eles: a descrença na Justiça pública; a visão de infância que construímos, a morte asséptica dos tempos contemporâneos que foi profundamente questionada com o modo que Isabella foi assassinada.

A espetacularização da barbárie e da dor, parece que não poupa ninguém. No domingo a mãe de Isabella posava pra fotos no show/missa em Interlagos, tudo e todos viram celebridade. Os jornalistas descrevem que o público está passivo diante da delegacia do Carandiru e é só as televisões ligarem as câmeras a massa começa a gritaria espetacularizada...

Acabei iniciando um debate no blog do Edu. Guim. (O 'circo romano' midiático 19/04/2008) porque acho que a metáfora usada é reducionista tanto para o passado como para o presente. Hoje mandei-lhe um mail, buscando esclarecer minhas críticas cujo trecho reproduzo aqui:

'Bom dia, eu não sei se eu consegui me fazer entender com as críticas que fiz ao seu texto no caso Isabella. Minha intenção foi a de historicizar a metáfora que vc usou para comparar as duas 'turbas' sedenta por sangue.

Para além de haver muitas diferenças entre os dois contextos e o que motiva as ações das massas na arena romana e na sociedade espetacularizada de hoje, os aspectos de classe, de raça, nossa concepção de infância historicamente construída e o horror que desenvolvemos pelo infanticídio e parricídio são componentes do comportamento contemporâneo.

Eu não sei o quanto os blogueiros se lêem, mas aqui eu fiz um apanhado até o dia 15/04 dos textos mais significativos que encontrei sobre o tema. Eu leio vários blogueiros e ando observando as reflexões e conclusões de cada um sobre a comoção diante da nossa 'Madelaine'.

De comum, todos, sem exceção, e me incluo nesta categoria, ficamos horrorizados com o fato e achamos que essa tragédia familiar deveria ser tratada com mais respeito, pois independente de quem seja o assassino, midiatizar a barbárie, narrar cada episódio (real ou não) como um jogo de futebol é desrespeitoso, beira o criminoso.'

Conclui o texto, contando o que narrei acima sobre as três mulheres de minha relação que não são mórbidas, mas que estão no grupo da 'turba' indignada.

Infelizmente as críticas que fiz nos comentários do Edu, descontentaram uma comentadora, que me achou pedante e equivocada. Seguem a minha crítica inicial ao texto de Edu e minha resposta a comentadora:

1º comentário:

'Já escrevi um longo post sobre esse foco no meu blog pessoal, agregando vários pontos de vista críticos a essa cobertura insana da mídia que ontem (sexta-feira) teve a cara de pau de dizer que os depoimentos prestados do casal na delegacia virou 'espetáculo', por mérito de quem, cara pálida? Mas embora eu seja solidária à mãe e a guria em questão, fica sempre a pergunta, por que Maria Eduarda da Silva do Carmo e as milhares de outras que morreram não tiveram essa atenção?

29/03/2008 - 14h49- Folha Online

Criança de 1 ano morre espancada em Guapimirim (RJ); padrasto é suspeito Uma criança de um ano e três meses morreu nesta sexta-feira (28), vítima de maus-tratos e espancamento, em Guapimirim (85 km do R io), que fica na serra dos Órgãos. Padrasto é suspeito. Maria Eduarda da Silva do Carmo foi encontrada pela Polícia Militar e levada ao hospital da cidade, mas não resistiu aos ferimentos e morreu. Moradores que estavam no momento acusaram o suposto padrasto da vítima de ser o responsável pelo crime.'

2º comentário:

'Edu, sobre os espetáculos nas arenas romanas, gostaria de historicizar, vou pedir licença pra me auto-citar:

"Hoje parece estranho a muitos de nós que uma multidão pudesse lotar imensos anfiteatros para assistir a uma luta que só terminava com a morte de um dos oponentes e divertir-se com ela. Para compreendermos essa e outras práticas culturais que muitos de nós condenamos e repudiamos, precisamos analisar o contexto em que foram construídas e vivenciadas"

(agora passo a citar J. A. Shelton um historiador da atualidade que estuda os espetáculos de arena):

'Acerca do fascínio exercido pelos espetáculos de sangue na arena, muitos romanos afirmavam que eles inspiravam um nobre desprezo pela morte. Mas é possível interpretar esses espetáculos como um ritual que reafirmava o poder e a autoridade. Os gladiadores, por exemplo, eram indivíduos sem direitos, marginalizados ou condenados por subversão da ordem pública. Ao executá-los em público, o povo romano reunido celebrava a superioridade e o seu direito de dominar.'

As lutas nas arenas tinham ainda um caráter religioso e, ao mesmo tempo, cumpriam a função de manter a ordem social. Ao assistir essas lutas ferozes, que aconteciam inicialmente no Fórum de Roma ou nos fóruns das cidades sob seu domínio e influência, o público via ali representada a luta do bem contra o mal, do fraco contra o forte, da purificação dos homens perante seus deuses, por meio do derramamento de sangue e tais lutas serviam igualmente para que os romanos reafirmassem seu poder sobre seus inimigos. (Oliveira, Conceição et alii. História em Projetos, SP: Ática, 2007, v.5ªs/6ºano, p. 166).

Em outras palavras, Edu, é bem mais complexo que reduzir os romanos às 'turbas sádicas' que não 'precisavam de desculpas para consumir sofrimento com deleite lascivo'.

Concluindo ou pelo menos tentando: é de fato assustador ver a 'turba' da Roma clássica e da atualidade. Mas buscar compreender os porquês de agirem com tanta violência (vc selecionou a foto que me chamou mais atenção ontem no site da uol e a montagem que fez dá bem a idéia do espetáculo cuidadosamente gestado pela mídia) não significa que a aceitamos ou aprovamos.

Na Roma antiga a arena era um espaço social onde o poder e sua popularidade eram encenados e a mesma plebe que conquistou seus direitos durante a República, tornando-se livres e com assistência do Estado diferenciavam-se dos sujeitos sem direitos (prisioneiros de guerra escravizados, marginais e estrangeiros).

Quem não ficou exposto a essa verdadeira loucura que foi a cobertura da mídia tem muita dificuldade de entender como pessoas comuns de diferentes idades se transformaram em sujeitos tão agressivos. Mas quando a morte de uma menina branca, de classe média é narrada como se fosse partida de futebol a gente passa a entender.

(E depois dos meus comentários, uma das leitoras desqualificou as minhas observações ao texto inicial de Edu, eu dirigi a ela a seguinte resposta):

'Para Marieta.
Também não estou disposta a polêmicas, o espaço exíguo, sequer, permite o debate.
Quanto ao tom professoral é vício de profissão, historiadores têm a estranha mania de nunca ler um texto passivamente, fazem sempre leitura a contrapelo.

Entendi perfeitamente a metáfora, mas creio que ela não nos ajuda a compreender o que de fato está ocorrendo neste caso da atualidade. Seu uso a meu ver contribui ainda mais para estereotipar um tempo, espaço e sujeitos dos quais hoje, pela imensa distância e desconhecimento, o senso comum reduz e aplica àquela sociedade uma série de juízos de valores, completamente desinteressantes para a compreensão histórica.

Do resto, creio que vale a pena ler vários textos críticos de outros autores que também (por mais desagradável que seja falar sobre esse assunto que tanto nos choca) dedicaram a compreender esta comoção nacional, sem reduzi-la e simplificá-la e isso não significa que a aceitemos.
Admiro o trabalho de Edu, mas neste caso, tenho críticas.'

**********

Aconselho ainda aos leitores que aqui chegarem, evidentemente que façam a leitura do artigo do Edu e dos demais textos (2 e 3 originalmente publicados no Vemelho.org, mas que na composição da Tita me pareceram mais ricos) 4 do blog do Pizza, 5 (Folha), cito-os:

1. O circo romano midiático 19/04/2008

2. Por que o caso Isabella comove?

3. Darwin e Isabella

4. Vamos dar um tempo nas explicações

5. Para historiadora, morte de Isabella é vista como sacrifício

De minha parte estou encerrando essa história que já é tão dolorida para quem é apenas espectadora distanciada como eu e imagino que também seja para os familiares (a mãe, a avó paterna que vi expressando sua dor como a minha própria mãe e todos os demais familiares em luto).

Que a pequena Isabella e todas as crianças barbaramente assassinadas possam descansar em paz e que de algum modo, nossa sociedade adulta e tão hedonista reflita sobre essas tragédias e busquem formas mais efetivas de evitá-las, assim como as tragédias estruturais de maus governos que matam nossas crianças pela fome, inanição, falta de esgoto, de educação e pela insegurança pública.