Ana e o suplício no Tatuapé

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As histórias que envolvem casos de racismo são irracionais, ao lê-las elas nos parecem sem pé nem cabeça, porque não há motivo racional para os suplícios que as vítimas passam. O racista trabalha no nível da naturalização da suspeição: 'é negro, não presta' e daí advém todo o resto. Ana (pseudônimo da vítima, que já havia me pedido ajuda para conseguir um advogado no auge da loucura que viveu com seus locadores) faz o breve relato dos meses onde viveu uma espécie de loucura coletiva pelo simples fato de ter nascido negra.

Racismo no Bairro do Tatuapé/ SP Por: Ana, no Racismo, não

Caros colegas, acreditem, eu levei 3 anos para tomar coragem e expor a minha história em alguns fóruns relacionados ao racismo à brasileira, nesses 3 anos eu senti e sinto, que não posso me omitir, tão pouco esquecer o que eu passei, imagino que muitos brasileiros passam por situações parecidas no dia- a- dia

No ano de 2007 eu aluguei um imóvel no bairro do Tatuapé/ SP. Contratei com uma imobiliária chamada Vilas Boas Imóveis, mas antes de assinar o contrato, eu enviei duas solicitações, a 1ª se tratava de um pedido para que houvesse um abatimento no aluguel, já que para ir ao banheiro tínhamos que descer as escadas que levam ao quintal, pois o mesmo encontra- se do lado de fora da casa, a 2ª solicitação era para incluir uma cláusula no contrato em que ao completar um ano, a multa contratual seria extinta, nos deixando livres para mudarmos ou não, entretanto as duas solicitações foram rejeitadas, segundo a imobiliária, pelo proprietário, um senhor com ascendência turca. Como precisávamos morar, fechamos o negócio, assinando o contrato.

Nós (eu, minha mãe e o meu filho), mudamos em um domingo e quando foi na segunda, ao sairmos para o trabalho e escola, estavam em frente ao imóvel (parados na calçada) o proprietário e o seu filho, cumprimentamos normalmente e eles sem graça, nos cumprimentaram. Com o passar dos dias, semanas e meses, observamos que não se tratava de uma situação natural, de simples curiosidade de vizinhos, pois os donos periodicamente estavam em frente ao portão da casa, ao sairmos e ao retornarmos, no período da manhã, tarde e muitas vezes a noite, espiando.

Certa vez, precisei viajar e minha mãe ficou sozinha em casa. Teve que sair e quando retornou, a tampa da caixa d'água havia caído dentro da caixa d`agua, reclamei na imobiliária e o proprietário demorou mais de 2 meses para mandar EMENDAR COM PIXE E COBRIR COM SACO DE LIXO PRETO!!

A Telefonica levou mais de 3 meses para conseguir ligar o nosso fone no local, as vezes eu escutava ora o filho ou o proprietário, ora a sogra ou o irmão da sogra dizendo que nós não estávamos em casa, cheguei a sair e chamar a atenção de um deles, dizendo que ele não precisava se preocupar em atender as pessoas que me chamavam

O cachorro vivia muito assustado e muitas vezes ao chegarmos, deparávamos com ele cheio de pó branco nos pêlos ou sujo de lixo, ás vezes gritava, chorava, o que me obrigava a colocá-lo pra dentro de casa.

No oitavo mês, o aluguel estava em dia, mas nada satisfeito, o filho do dono rasgou os quatro pneus do carro da amiga da minha sobrinha que vieram nos visitar e encostou o carro em frente ao comércio do seu pai (era domingo e o mesmo, estava fechado)

No dia seguinte, fui ao comércio do proprietário e disse a ele que o seu filho havia rasgado os pneus do carro e ele disse: “Ele fez isso, porque não sabia de quem era o automóvel!” Achei a resposta absurda, recorri a imobiliária, fui atendida pela secretária e falei que eu desconfiava de preconceito ou racismo, no dia seguinte a dona me ligou e perguntou se eu queira que ela passasse a questão do preconceito ou racismo aos proprietários e eu falei que deixaria a seu critério

A sogra do filho do proprietário trabalha na escola em que meu filho estudava e tem amizade com o diretor. O meu filho não tinha sequer, uma nota vermelha no histórico escolar, após as denúncias na imobiliária, as reclamações não paravam e o boletim no final do ano, veio estampado de notas vermelhas, tive que recorrer a diretoria de ensino, ajudei ele nos estudos, enviei e-mail para o secretário do Prefeito Gilberto Kassab, e assim consegui que fossem aplicados novos exames para minimizar o quadro, felizmente ele conseguiu recompor as notas parcialmente.

A secretária da imobiliária aconselhou minha mãe a procurar um local “rapidinho” para desocupar o imóvel, segundo ela os donos “não queriam problemas”

Por fim, a nora do proprietário, histérica, invadiu o meu quintal, eu da janela pedi para que ela se retirasse dali, ela se recusou e eu fui retirá-la pessoalmente, foi a gota d´agua... Brigamos, ela disse que minha mãe se parecia com o Djavan e que na nossa casa estava cheia de bicho, o marido dela (filho do proprietário) entrou no meio e me acertou dois golpes nos olhos

Veio a polícia, fomos todos pra delegacia, o escrivão, enfezado, primeiramente perguntou o que houve à nora do proprietário e ela disse que o meu filho estava no portão e a chamou de bruxa, o escrivão tratou o meu filho de 12 anos como um criminoso, e só depois perguntou a versão dele e o meu pequeno disse que antes ela o chamou de “neguinho”.

O filho do proprietário disse que eu me esmurrei para acusá-lo e a advogada deles, distorceu os fatos no boletim de ocorrência.

Por este motivo, o Ministério Público arquivou o processo, que é gerado automaticamente após a abertura de um Boletim de Ocorrência, ao não entender o que havia acontecido de verdade.

Eu nunca me conformei pelo que passamos no imóvel. Participo de palestras, cursos, reuniões sobre o tema "RACISMO"

Procurei e procuro saber porque passamos por isto, já que pagamos com muito suor, sacrifícios, até nos mudarmos

Pela minha experiência, o Brasil está muito, mas muito distante mesmo de conseguir de fato, punir pessoas que cometem o racismo, bem como aplicar a lei Maria da Penha, já que os coleguinhas do meu filho, que presenciaram os golpes, quando a polícia chegou, gritavam revoltados que o homem havia me batido, mas na delegacia, mesmo um deles sendo negro, não tomou partido nenhum, ao contrário, o filho do proprietário colocou a mão no ombro do PM negro e disse: "Você será minha testemunha", olhou pra mim, "Se você me prejudicar, eu te ponho na cadeia", já a sua esposa "Nós morarmos aqui no Tatuapé a 100 anos"

Nem se tal bairro fosse o jardins! ! !

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