Bachelet e a chance de jogar o pragmatismo pela janela

Escrito en BLOGS el

OS DOIS QUASES DE BACHELET

Ex-presidenta ficou a poucos votos de ser eleita no primeiro turno e sua coalizão conseguiu maioria legislativa insuficiente para aprovar reformas

Victor Farinelli, especial para o Blog Maria Frô

Domingo, 17 de novembro, dia do primeiro turno eleitoral chileno. Um enorme cenário montado na frente do Hotel San Francisco, no centro de Santiago, esperava a hóspede ilustre, a ex-presidenta chilena Michelle Bachelet, favorita para voltar ao Palácio de La Moneda em 2014. Nesse palco, um pequeno pedestal, preparado para o discurso vitorioso da candidata, com muito espaço ao seu redor. Estava montado para um triunfo definitivo, sua ratificação como presidenta eleita, ao lado de todos os assessores, aqueles que já estariam brigando pelos cargos no futuro governo.

Por volta das 22h, em outro lugar da cidade, o presidente do Servel (Serviço Eleitoral do Chile) anunciava uma parcial da apuração, com pouco mais de 80% da contagem realizada, mostrava um panorama irreversível, mas que dizia outra coisa: Bachelet com 46,67% dos votos e uma vantagem contundente sobre a segunda colocada, a governista Evelyn Matthei (com 25,01%). Incapaz, porém, de evitar o segundo turno.

Minutos depois, Bachelet aparece inesperada e inexplicavelmente, subindo no palco. Alguns assessores não puderam esconder a cara de surpresa com sua chegada repentina ao local do discurso. Exigiu estar sozinha. Sua baixa estatura (ela tem 1,60m) se perdia no eloquente vazio ao seu redor, que evidenciava aqueles 3,33% de votos que faltaram para ela ser eleita já naquele dia.

A solidão do discurso era uma demonstração de força. A líder chamou para si a responsabilidade quando o resultado não foi o esperado, assumiu sozinha o custo dos rostos de frustação espalhados pelo público. Também era um recado aos assessores, de que a reunião que vinha com a chefa seria tensa. Para a plateia, a mensagem foi a de manter o ânimo: “que ninguém se engane, aqui houve uma tremenda vitória nossa no primeiro turno, e se temos que ir a um segundo, conseguiremos outra tremenda vitória, e uma maioria ainda mais ampla”.

Problemas no Legislativo

Mas a frustração dos seus aderentes já não tinha relação com o panorama eleitoral. Bachelet vai a um segundo turno com poucos riscos, contra a candidata com maior rejeição (39%), que representa um governo com baixíssima popularidade (33% de aprovação) e com muito mais chances de conseguir votos dos demais candidatos.

Porém, o projeto desenhado pela ex-presidenta para o seu retorno ao país tinha objetivos claros. Absorver os anseios populares por reformas que se manifestaram nas ruas durante todo o governo do atual presidente Sebastián Piñera, se alçar como a líder capaz de satisfazer essas demandas, e conseguir uma votação histórica, suficiente para uma vitória presidencial em turno único, e a formação de uma maioria parlamentária capaz de aprovar tudo o que foi prometido.

O sabor amargo daquele final de domingo era por conta da esperança que a campanha catalisou em torno a essas possíveis transformações no país, o que foi colocado em dúvida porque, nas eleições legislativas, a coligação Nova Maioria (formada este ano por Bachelet, reciclando a antiga Concertação) ficou a apenas uma cadeira de conseguir o quórum necessário, em ambas as câmaras, para aprovar as reformas que ela estabeleceu como prioridades em seu programa de governo: uma reforma educacional que leve gratuidade universal ao ensino público, uma reforma tributária que eleve os impostos das grandes empresas e da classe alta, e uma reforma constitucional que enterre a ainda vigente constituição da ditadura de Pinochet.

Essa cadeira que faltou no Senado pode ter reflexos dentro de seu próprio bloco político. A Nova Maioria reúne um conjunto bastante amplo de legendas, que vão desde o Partido Comunista e o Partido Socialista (do qual ela faz parte) até o Partido Democrata Cristão. O cálculo que alguns analistas faziam era que uma vitória no primeiro turno e uma bancada de grande porte no Congresso permitiriam a Bachelet pressionar o setor mais moderado de sua aliança, para não entravar as reformas, ameaçando expor os dissidentes que não ajudassem a aprová-las.

Para a cientista política María Francisca Quiroga, do Instituto de Assuntos Públicos da Universidade do Chile, “a necessidade de negociar com a oposição, nesse provável novo governo de Bachelet, colocará principalmente o Partido Democrata Cristão numa situação mais cômoda, onde essa negociação com a direita poderia suavizar um pouco o projeto, que se transformaria mais em ajustes e que em reformas, e sem que o partido seja responsabilizado por não chegar a mudanças maiores”.

Por outro lado, o alívio dos moderados nesse aspecto topa com outros problemas. Foram os únicos blocos dentro da Nova Maioria que perderam vagas no parlamento. Os comunistas dobraram seus representantes, tiveram na ex-líder estudantil Camilla Vallejo a deputada mais votada do país, e foram os grandes responsáveis por conseguir, na Câmara dos Deputados, aquele quórum qualificado que no Senado não foi possível. Mesmo no Senado, embora a falta desse quórum beneficie os democratas-cristãos no aspecto do jogo político, em termos de representação o partido sofreu com a derrota de sua senadora mais emblemática – Soledad Alvear, que perdeu a disputa como representante de Santiago para o socialista Carlos Montes, um dos mais radicais defensores das reformas.

Esquerdização eleitoral x moderação legislativa

A vitória no segundo turno não parece que será um problema para Michelle Bachelet. Além da grande vantagem sobre Evelyn Matthei, ela também é beneficiada pelo fato de seis dos sete candidatos que ficaram no caminho neste primeiro turno representarem pequenos partidos de esquerda, cujos programas coincidiam com as três propostas mais importantes entre as defendidas pela ex-presidenta (as reformas educacional, constitucional e tributária). Esses seis candidatos juntos somaram 27% – mais que a candidata que ficou em segundo.

Porém essas candidaturas nanicas teceram suas críticas a Bachelet durante a campanha, questionaram o porquê dela não ter realizado isso em seu primeiro governo, e apontaram os setores moderados da Nova Maioria como os responsáveis pela falta de credibilidade nas promessas da ex-presidenta. O terceiro colocado do primeiro turno, Marco Enríquez-Ominami (do Partido Progressista, que conseguiu 11%), provocou: “não há dúvidas sobre as convicções de Michelle Bachelet, mas ela mesma sabe que alguns partidos que estão com ela não querem as reformas que estão oferecendo”.

A cientista política María Francisca Quiroga vê uma interessante dicotomia diante de Bachelet, entre a necessidade de radicalizar o discurso do ponto de vista eleitoral, para buscar o apoio de quem votou pelos partidos mais à esquerda, em paradoxo com a necessidade de moderar as propostas no Congresso, quando precisar negociá-las com a oposição, no Senado.

Porém, a acadêmica acha que essa poderia ser uma oportunidade para a ex-presidenta. Segundo Quiroga, se Bachelet aposta em conquistar os eleitores dos pequenos partidos poderia conseguir uma vitória enorme no segundo turno, capaz sim de pressionar os setores moderados da Nova Maioria. “Esse eleitor que votou nos demais candidatos de esquerda concorda com as propostas de Bachelet, mas desconfia da sua capacidade de realizá-las. Se ela quiser esses votos, terá que se comprometer mais, e isso a distanciaria dos setores moderados”.

O segundo turno no Chile será realizado no dia 15 de dezembro. O mais provável é que, nesse então, o cenário armado na frente do Hotel San Francisco finalmente receba a festa que não aconteceu no 17 de novembro. Resta saber quem e quantos serão os que vão preencher aquele espaço vazio ao redor da presidenta eleita.