Como é que pobre vive em São Paulo?

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Borá lá. Hoje foi um dia de cão. A medir pelo estado dos bancos e das lotéricas, a impressão é que o ano começou mesmo hoje.

Meu dia começou do avesso, mas ele teve um ponto positivo (ao menos para quem está disposto a olhar para além do próprio umbigo): experimentei na pele algumas horas do suplício que o trabalhador de classe C passa neste inferno de cidade.

Não teria passado se tivesse conseguido abrir o banco pela rede, mas o pior navegador do planeta, o Internet Explorer, não abria e, quando abriu, o sistema do Bradesco estava indisponível. E antes que os geeks venham me abufelar, a conta é jurídica e não abre em nenhum outro navegador que não seja o IE.

Bem, perto de casa tem uma agência. Pensei: não vou pegar carro e com solzão de 40 graus à sombra, vamos de bike!

Eu só queria pegar um didim para mandar pra minha véia, mas a fila saía pelo ladrão. A senhora do meu lado, igualmente desacorçoada, informa-me que nas Casas Bahia têm caixa eletrônico do Bradesco. As Casas Bahia ficam em frente à agência. Atravesso a rua e vejo que a fila dá voltas dentro das Casas Bahia.

Conclusão: volto pra casa, pego o carro para ir às agências bancárias da USP. Já reparou que em toda a área mais valorizada da cidade entrar em um banco é menos penoso? Explico: as agências são mais amplas, o ar condicionado funciona e elas nunca estão cheias, porque boa parte dos clientes fazem vários dos serviços bancários pela rede. Não me refiro às agências personalizadas, essas são restritas a 1% da população, experimente viver em um bairro que tem mais de 100 mil pessoas e uma única agência do Bradesco, na principal avenida deste bairro, e você entenderá sem problemas meu exemplo anterior e poderá vislumbrar de leve o suplício dos trabalhadores nas periferias.

Bem, já estava na rua, de carro, borá comprar gás (nas periferias a gente ainda vive com botijões) e já que estou perto da lotérica, bóra colocar créditos no cartão do bilhete único. Explico: embora o Kassab tenha aumentado abusivamente a passagem de ônibus e embora exista apenas um ônibus que faz o trajeto da minha casa ao trabalho, eu gasto 14 reais por dia só de estacionamento. Vou tentar economizar um pouco, porque somando esta despesa ao combustível e ao almoço, uma boa parte do que recebo de dois em dois meses (por vezes num intervalo maior) some feito poeira no ar.

Só existe um inferno pior que o Bradesco do meu bairro: a casa lotérica. A daqui tem cerca de 2 metros de largura por 4 de comprimento. Agora comprime nesta área de 8 m²  50 pessoas organizadas em uma fila em caracol. Eu contei: 52 pessoas em um cubículo menor que o meu quarto fazendo roda em infinitos círculos. A cena era bem pior que a do pátio de prisioneiros no Expresso da meia noite!

O calor dos corpos de 52 pessoas nesta caixa de sapato de concreto sem janelas, com um ventilador de teto que não espanta nem as moscas, é uma sensação do portão dos infernos.

Acho que hoje em dia absolutamente tudo se faz em lotérica, inclusive apostas. Paga-se todo tipo de conta, abre-se conta bancária! Bota-se crédito em celular, recarrega-se bilhete único, lê-se a sorte, despacha-se a sogra...

Ah! Mas pera aí, como era mesmo no tempo da Marta, aquela prefeita que criou o bilhete único? Além do preço da passagem não comer o ganho real que o salário mínimo possui hoje, podíamos recarregar o bilhete na roleta do ônibus, não?

Por que diabos este síndico de casinha de bonecas, que atende pela alcunha de Aquassab, atual prefeito de Águas de São Paulo, mantém cobrador nos ônibus e não nos deixa recarregar o bilhete eletrônico nas catracas dos mesmos?

Quanto será que sai do bolso do contribuinte a terceirização do serviço para recarregar bilhete único nas lotéricas?

É nos detalhes que percebemos como se rouba o tempo do trabalhador: tempo perdido nas lotéricas (o novo banco infernal dos pobres) ou em filas de bancos que enriquecem astronomicamente, mas que não melhoram os serviços para seus clientes mais populares. Nas periferias as agências são de menos e pessoas demais.

Esta mesma lógica perversa do mercado pode ser vista na falta de equipamentos públicos nos bairros periféricos: insuficiência ou completa ausência de hospitais e postos de saúde que faz com que os trabalhadores sem acesso a plano de saúde privado fiquem meses esperando uma consulta, a realização de um exame ou uma intervenção cirúrgica. As ruas são esburacadas quando não são de terra batida, as linhas de ônibus são poucas e o número de ônibus circulando também e nem pensar que o metrô chega a essas regiões esquecidas pelos deuses e pelos governantes.

Não há bibliotecas, não há espaços verdes para o lazer e prática de esportes, não há cinemas, porque esses ficaram inacessíveis ao trabalhador e foram todos ocupados pela infinidade de igrejas neopentecostais que inundam as periferias.

As periferias são além de feias, cruéis, os desserviços dos homens públicos e de corporações privadas roubam o tempo de descanso e convivência familiar do trabalhador.

Segundo a máxima capitalista, tempo é dinheiro e, neste sentido, além da mais-valia cotidiana, grande parte da vida dos trabalhadores que vivem em São Paulo se esvai pelo ralo para se recarregar um simples bilhete eletrônico e usar um transporte público indecente, num trânsito ainda mais indecente. Para aqueles quem acham que está tudo uma maravilha nesta cidade eu os convido a passar um dia na fila da lotérica do lado de cá da ponte, carregar um bilhete único, pegar um ônibus e tentar atravessá-la, nem precisa ser em dia de dilúvio como hoje. Boa sorte nesta empreitada!