Cultura da Repetência II

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Por uma escola contemporânea

Para Maria do Pilar Lacerda , secretária de Educação Básica do MEC, “não adianta reprovar, é preciso ensinar”

A dívida social do Brasil com a educação é imensa e isso, por si só, seria motivo suficiente para assegurar que fossem investidos na área muito além do que os atuais 3,2% do PIB. Mas, mesmo que isso de fato acontecesse, seria preciso mais do que dinheiro para garantir qualidade ao sistema público de ensino.

Para a professora Maria do Pilar Lacerda Almeida e Silva, existe um tripé que está por trás de todo bom gestor de educação, seja em qual instância de governo ele atue: um projeto pedagógico focado na aprendizagem, boa capacidade administrativa e perfil político para negociar com as diversas lideranças da sociedade. Formada em História, Pilar dedicou sua carreira à educação pública. Na rede municipal de Belo Horizonte, deu aulas, dirigiu escolas de ensino básico e comandou a Secretaria Municipal de Educação entre 2002 e 2007. Em junho deste ano, Maria do Pilar assumiu a Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação (MEC).

Nos últimos dois anos, Pilar também presidiu a União Nacional dos Dirigentes Municipais da Educação Básica (Undime), órgão que desempenha um papel muito importante nos processos de discussão e formulação de políticas de educação, já que dela fazem parte todos os secretários municipais de educação. Para assumir sua nova função no MEC, ela também anunciou seu desligamento da Undime durante o fórum nacional da entidade, realizado em junho em São Luís (MA). Foi lá que ela concedeu a seguinte entrevista à Carta na Escola na qual aborda temas centrais da educação brasileira, como o desempenho das secretarias municipais e sua importância nas políticas nacionais, a administração dos recursos, formação de professores e a necessidade de dialogar e estar sempre aberto para as diferenças.

Carta na Escola: Qual o perfil dos secretários municipais de educação do Brasil?

Maria do Pilar Lacerda: O País tem 5.562 municípios, a formação dos dirigentes é muito heterogênea, com escolaridade variada. Em geral, são quase todos professores da rede pública, com muito tempo de sala de aula. As capitais têm dirigentes mais profissionalizados, talvez porque os prefeitos percebam a complexidade de gerir a educação de uma cidade. Não é regra, mas no interior ainda existe bem forte a relação de compadrio, com familiares do prefeito em cargos determinantes. De toda forma, os secretários municipais de educação são escolhidos sempre por critérios políticos. Alguns deles exercem o cargo por três ou quatro gestões. Ou seja, fazem um trabalho tão bom que muda o prefeito, mas o secretário continua. O difícil mesmo é quando há muita troca de secretário numa mesma gestão ou quando o secretário abandona políticas eficientes que foram desenvolvidas por seu antecessor. Aí, a cidade volta ao patamar zero.

CE: E quando isso acontece, pode comprometer parte da formação básica de uma geração?

MPL: Uma parte ou ela por inteiro. A secretaria de Educação de um município é muito importante para atender à demanda social da cidade e garantir que os primeiros anos dos meninos na escola tenham qualidade. Não se tem um ensino médio de qualidade se não houver uma educação fundamental de qualidade. E vice-versa. Está tudo interligado.

CE: Quais são as principais dificuldades de uma secretaria municipal de Educação?

MPL: Em relação à educação infantil, além da necessidade de se criar vagas, é necessário pensar um modelo, pensar em um financiamento, porque até este ano não existia e só ficou viável com o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb). E, com exceção de pouquíssimos municípios que não têm área rural, a questão do transporte escolar é muito complexa. O Brasil é um país muito grande. Tem lugares no Norte, por exemplo, em que a criança demora três horas dentro de um barco para chegar à escola. E não tem como ser diferente. São muitas as cidades que têm 20 mil habitantes e 90 escolas, com 10 ou 20 alunos cada, ou que transformam 20 escolas em uma só. O dinheiro para o transporte vem do MEC, pelo Salário Educação. Mas, por exemplo, o município transporta o aluno da rede estadual e esta repassa um valor insuficiente. É uma relação muitas vezes atritada.

CE: Uma das principais reclamações das secretarias é a falta de autonomia para gerir seus recursos.

MPL: Sim, é claro. Uma boa secretaria depende de um bom prefeito. Sem o apoio dele, fica difícil. Agora, o orçamento da educação cria uma ilha de prosperidade dentro da prefeitura, que é obrigada a destinar, pela Lei de Diretrizes Básicas e pela Constituição Federal, no mínimo, 25% da receita de impostos e transferências. Em Belo Horizonte, por exemplo, são 30%, o que significa dizer, são 720 milhões de reais para a educação, enquanto a assistência social fica com 20 milhões ou 30 milhões de reais, por exemplo. No entanto, as pessoas começam a querer fazer projeto pensando no recurso que a educação tem, o que faz com que alguns secretários tenham de dividir ou usar esse recurso de maneira indevida. A Secretaria de Educação tem uma receita carimbada, e essa vinculação orçamentária é uma conquista social. Tanto que alguns municípios que fazem o uso correto desses recursos conseguem fazer coisas que outros não conseguem. Quem tem uma arrecadação própria e forte de Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), Imposto Sobre Serviços (ISS) ou Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) tem recursos suficientes para, sem ajuda federal, fazer uma política forte de educação infantil.

CE: Quais são, na sua opinião, exemplos de usos incorretos do orçamento da educação?

MPL: Gastar muito mais na secretaria do que com o pessoal da escola. Ou gastar mais com mobiliário da escola do que com a biblioteca, por exemplo. Eu sempre digo que o orçamento é fundamental e precisa aumenta r, porque ainda não é suficiente para abater a dívida social que o Brasil tem com a educação. Mas só orçamento não resolve o problema. Se não houver um projeto pedagógico consistente, esse dinheiro vai para o ralo. Com o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), foi possível localizar cidades com orçamento grande e baixo resultado de aprendizagem. É preciso fazer a discussão da autonomia do secretário em cima do projeto que essa cidade tem. Só assim as compras e aquisições ganham sentido.

CE: E os dirigentes estão preparados para isso?

MPL: Desde 1999 o MEC tem um projeto de formação de secretários municipais, justamente porque falta qualificação. Não é fácil ser secretário de educação, não é para qualquer um. Requer conhecimento específico de orçamento, de funcionamento da máquina, convicções pedagógicas, um bom nível de informação e de leitura. As pessoas reclamam que tem muito trabalho, muito problema. E outra coisa: tem de ser político. Eu encontro, às vezes, secretários que dizem não gostar de política. Eles estão no lugar errado, porque estar numa secretaria é fazer política no bom sentido: conversar com pais, igrejas, organizações não-governamentais, vereadores, professores, diretores, enfim, ouvir as diferentes forças.

CE: Qual foi o legado da sua gestão à frente da Undime?

MPL: O MEC, o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) e a Undime são as três forças que fazem a política pública acontecer. Da parte da Undime, acho que criamos uma capacidade de conversar com as diferenças. A diretoria era muito plural. São 26 presidentes estaduais, cinco regionais, além da diretoria executiva. A gente dialogou com diversas frentes e trabalhou de maneira suprapartidária. Os diretores são de diversos partidos e campos da política. Tivemos a sorte de ter um ministro com uma capacidade de escuta sensacional.

CE: É dessa forma que a senhora pretende comandar a Secretaria de Educação Básica?

MPL: O que me seduziu para aceitar o convite de dirigir a Secretaria de Educação Básica foi ter visto o trabalho do ministro Fernando Haddad antes. Temos muito trabalho pela frente em Brasília. E o que ele quer que eu faça é isso, ir para as ruas, ouvir as escolas, as diretoras, as secretárias. Parece simples, mas não é. Não é só em educação, mas, principalmente nesta área, as pessoas chegam com uma idéia pronta e, depois de oito horas de reunião, não mudam de opinião. É um atestado de burrice, mas é muito comum ter um certo ciúme de projetos alheios e resistências à mudança.

CE: Para onde está caminhando o foco de discussão da educação básica?

MPL: Com os últimos resultados de avaliação (Prova Brasil e o Saeb), começa a haver uma discussão muito forte sobre a aprendizagem. Enfim, a discussão sai da mesmice do fracasso escolar e da indisciplina. E os gestores de políticas públicas educacionais voltam-se para a alfabetização e o currículo.

CE: A avaliação faz parte do processo de aprendizagem. Até que ponto o modelo de progressão continuada assegura que os alunos, de fato, aprendam?

MPL: As pesquisas mostram que quanto maior o número de reprovações, maior é o fracasso escolar daquela criança. Logo, deveria entrar na cabeça das pessoas a idéia de que não adianta reprovar, tem de ensinar. A Sônia Mograbi (Secretária Municipal de Educação do Rio de Janeiro) é muito corajosa, o projeto do Rio é moderno. O Brasil é um dos países com maiores índices de reprovação do mundo, quase 35%. Se reprovar educasse, seríamos uma nação de gênios. Tenho para mim que as críticas, reproduzidas pela mídia à progressão continuada fazem parte de uma teoria conspiratória: sempre existe um desejo privatizante. No fundo, querem é dizer: a escola particular não é assim. Só que, no caso do Brasil, isso não é verdade. Os exames mostram. O ministro Fernando Haddad sempre diz: ‘Nós gastamos mais ou menos mil reais por ano com o aluno do ensino fundamental, enquanto a rede privada gasta mil reais por mês, e, se você olhar o resultado, a gente faz muito melhor’. A relação custo–benefício é melhor e os resultados também.

CE: A crescente adoção do material didático apostilado na rede pública tem a ver com a ausência de projeto pedagógico das secretarias, municipais e estaduais?

MPL: Os municípios recebem o livro didático do MEC, que é o maior comprador de livros do mundo. E quem os escolhe são as escolas. Pelo Programa Nacional de Biblioteca Escolar é possível também adquirir os paradidáticos e livros de literatura. Agora, a apostila facilita o trabalho e isso é muito perigoso, porque ela traz uma receitinha e é uma fonte só de consulta. O problema é vir uma apostila com o conteúdo errado, e o professor não ter formação para criticar. Gosto de escolas que guardam livros diferentes na biblioteca. Mas isso depende muito da formação dos professores. O professor com formação mais frágil precisa de uma receita. O que a gente tem de fazer é investir na formação do professor para que ele tenha mais autonomia e guarde a receita na gaveta.

CE: A educação integral também vem ganhando espaço na pauta de políticas públicas. Qual o modelo mais coerente para o Brasil?

MPL:Não há chance de ampliar a carga horária nas escolas públicas brasileiras com aulas das 7 horas às 17 horas no mesmo prédio. Defendo mais tempo na escola, mas não exatamente dentro da sala de aula. A média hoje de aula, em nível nacional, é de duas a três horas, e é insuficiente. Mas defendo a inclusão e não a reclusão. Deixar os meninos reclusos dentro de um prédio, os alunos dessa geração, que precisam experimentar para aprender, é uma tortura. Eles têm de estar em ambientes de aprendizagem, que são múltiplos: uma biblioteca, um parque, um pátio, uma praça, um cinema, um clube. Eu acredito num modelo de escola integral que se articule com a comunidade e resignifique os espaços da comunidade, melhorando os espaços urbanos, num processo muito rico. E mais: é preciso fazer a comunidade entender o que é a aprendizagem, fazer esta discussão internamente, um aprendizado mais contemporâneo. Não tenho dúvida de que temos de investir em ampliação do tempo em escola, mas temos de abandonar a idéia da escola em tempo integral.