Dois textos de Ghiraldelli e dois pitacos meus

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Ghiraldelli em seus dois textos sobre cotas foi ainda mais radical do que eu nos argumentos de que as cotas raciais não são reparação histórica. Eu concordo com ele, na medida em que não há reparação para cerca de 400 anos de escravidão e nenhuma política de indenização aos ex-cativos no pós-abolição.

Cotas são em grande medida didáticas, não é possível que as universidades públicas dentro de um país que se pretende democrático continuem, em pleno século XXI, monocromáticas, mais excludentes que as universidades sulafricanas no período do Apartheid.

No segundo artigo do filósofo (que foi escrito primeiro, mas que aqui reproduzo por último) ele faz uma distinção entre direita e esquerda que não é de toda correta. Há muitos indivíduos na mídia e  na academia que se dizem de esquerda e democráticos e que em muitas outras causam carregam bandeiras da esquerda que são contra cotas, como Rudá Ricci, como há alguns indivíduos da Direita que as defendem, como Míriam Leitão que está longe de ser vista como uma jornalista de esquerda.

Outra questão: não são os 'intelectuais lulistas' que as defendem, a bandeira pelas cotas é antiga nos movimentos negros que são de diferentes colorações político-partidárias. Embora existam entre os inúmeros movimentos negros aqueles que lêem e tratam cotas como reparação, a tônica que alimenta a defesa das cotas é exatamente a que eu e o Ghiraldelli estamos de acordo: cotas raciais são ação política de educação interracial para o respeito às diferenças, para que se diminua o estranhamento da sociedade brasileira em relação aos negros 'fora de lugar', fora dos espaços historicamente 'naturalizados' aos negros- os trabalhos manuais, menos valorizados socialmente. Assim, pós- cotas, com uma maior presença na sociedade de  negros médicos, engenheiros, arquitetos, economistas  e outras profissões socialmente valorizadas o estranhamento da presença de negros nos lugares socialmente valorizados como as universidades findará e a cor negra passará da “cor da suspeição” para uma cor como qualquer outra, no sentido que ela fará colorir a elite brasileira. Isso é grande coisa sim, um passo imenso para o combate ao racismo.

Seguem os dois artigos de Ghiraldelli para apreciação:

Por Paulo Ghiraldelli
06/03/2010

A pior defesa que conheço das cotas para negros e índios na Universidade brasileira é a dos que dizem que isso se insere em uma política educacional de compensação.  Em geral, essa defesa é feita pela esquerda. O ataque mais perverso que conheço contra as cotas raciais é o dos que dizem que defendem, ao invés destas, as cotas sociais. Em geral esse ataque é o da direita, em especial o que é dito pelos parlamentares do PSDB e DEM.

Cota racial advém de uma política contemporânea, em geral de cunho social-democrata ou, para usar a terminologia americana, mais apropriada ao caso, liberal. A cota social é esmola, tem o mesmo cheiro da ação de reis e padres da Idade Média, e aparece no estado moderno travestida de política.

A cota social não faz sentido, pois o seu pressuposto é o de que há e sempre haverá pobres e ricos e que aos primeiros se dará uma compensação, que obviamente não pode ser universal, para que alguns usufruam da boa universidade destinada aos ricos. É como se dissessem: também há pobres inteligentes que merecem uma chance para estudar. O termo social, neste caso, é meramente ideológico. Não se vai fazer nenhuma ação social com o objetivo de melhoria da sociedade. O que se faz aí é, no melhor, populismo, no pior, a mera prática a esmola mesmo.

A cota racial não pode ser posta no mesmo plano da cota social. Todavia, a sua defesa cai na mesma vala da cota social quando se diz que ela visa colocar os negros na universidade, até então dominada pelos brancos, para que se possa compensá-los pela escravidão ou pelo desleixo do estado ou pelo racismo velado ou aberto. Não! Cota racial não é para isso. O objetivo das cotas é o de colocar um grupo no interior de um lugar em que ele não é visto para que, assim, de maneira mais rápida, se dê o convívio social entre os grupos nacionais, de modo a promover a integração – o que passa necessariamente pelo convívio que pode levar ao conhecimento entre culturas, casamentos, troca de histórias e criação de experiências comuns. A questão, neste caso, é de visibilidade do grupo por ele mesmo e da sociedade em relação aos grupos.

No Brasil há miscigenação. E em grande escala. Ótimo! Mas não basta. Não é o suficiente porque há espaços físicos e institucionais, no Brasil, que não estão disponíveis para determinados grupos étnicos e isso promove uma má visibilidade da nossa população em relação a ela mesma. A população não vê o negro e o índio na universidade e, com isso, não formula o conceito correto de aluno universitário: o universitário é o estudante brasileiro de ensino superior. Ora, se você não vê o negro e o índio nesse espaço, o conceito não se forma de modo ótimo, o que é gerado na mentalidade, ainda que não verbalizado de maneira completamente clara, é o seguinte: o universitário é o estudante brasileiro branco de ensino superior. Isso é o pré-conceito a respeito de aluno universitário. Ele está aquém do conceito – por isso ele é “pré”. Ele pode gerar uma visão errada e, a partir daí, uma discriminação social, em qualquer outro setor da vida nacional.

Assim, para resolver o problema de brancos, negros, índios ou qualquer outro grupo, do ponto de vista social, no sentido de fazer com que todo brasileiro tenha acesso à universidade, a política não é a cota social. Também não é a cota racial. A política correta é a melhoria da escola pública básica, para que todos possam cursar, depois, o melhor ensino universitário. Agora, para resolver o problema da diminuição do preconceito em qualquer setor e, é claro, não só no campo universitário, uma das boas políticas é ter o mais rápido possível o negro e o índio em lugares onde  esses brasileiros não estão. Portanto, também na universidade; e é para isso que serve a cota racial. Isso evita a formação de uma mentalidade que se alimente de formulações aquém do conceito – há com isso a diminuição da formação do pré-conceito e, portanto, no conjunto da sociedade, menos ações prejudiciais contra negros e índios.

Foi assim que a América fez. As cotas ampliaram rapidamente o convívio e mudaram a mentalidade de todos.  Mesmo os conservadores mudaram! O preconceito racial que, na época de Kennedy, era um problema para o FBI e, depois, do Movimento dos Direitos Civis, diminuiu sensivelmente nos anos oitenta.  A visibilidade do negro se fez presente diminuindo sensivelmente o que o americano médio – negro ou branco – pensava de si mesmo. Foi essa política que permitiu um país com bem menos miscigenação que o nosso pudesse, mas cedo do que se imaginava, eleger um Presidente negro – algo impensável nos anos 60.

A ação em favor da cota social é um modo de não dar prosseguimento à política educacional democrática e, ao mesmo tempo, atropelar a política de luta contra a formação do preconceito racial. É uma ação da direita contra a esquerda. A esquerda defende sua política de modo errado ao não lembrar que a cota racial não é política educacional, é política de luta pela integração e pela ampliação da visibilidade de uma cultura miscigenada para ela mesma.  Cota não é para educar o negro e o índio, é para educar a sociedade! Ao mesmo tempo, a esquerda se esquece de denunciar que cota social, esta sim, quer se passar por política educacional e, na verdade, não é nada disso – é uma atitude ideológica conhecida, que sempre veio da direita que, sabe-se bem, sempre teve saudades de uma época anterior ao tempo da formação do estado moderno, uma época em que a Igreja e os reis saiam às ruas “ajudando os pobres”.

Os senadores que defendem a cota social e não a cota racial, no fundo imaginam o mesmo que os ricos da Idade Média imaginavam, ou seja, que os pobres existem para que eles possam fazer caridade e, então, como os pobres – de quem o Reino de Céus é dado por natureza, como está na Bíblia – também consigam suas cadeiras junto a Jesus.

Não deveríamos estar debatendo sobre cotas. Afinal, já as usamos em tudo. Por exemplo, fizemos cotas de mulheres para partidos políticos e, com isso, diminuímos o preconceito contra a mulher na política. Por que agora há celeuma em uma questão similar? Ah! É que a cota racial mexe com os brios dos mais reacionários. No fundo, eles não querem mesmo é ver nenhum negro ou índio em espaços que reservaram para seus filhos.

Uma gota de sangue ... azul

Por Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo 9/09/2009

A direita brasileira não quer que exista aquilo que sempre existiu, ou seja, uma carteira de identidade na qual se registra a cor do indivíduo. Não quer isso porque tal carteira, agora, com a política de cotas para o ensino superior, supostamente daria o direito de negros ricos entrarem na universidade com menos nota do que um branco pobre ou rico.

A esquerda brasileira é a favor da política de cotas raciais nas universidades. Faz a defesa de tal política dizendo que é um elemento de “justiça histórica”, pelo fato dos negros terem sido escravizados e, depois, favelizados e discriminados pelo preconceito. Além disso, acredita que tal política alavancaria a educação dos negros de modo mais rápido.

As posições contra as cotas estão sintetizadas no que o professor Demétrio Magnoli advoga no seu livro Uma gota de sangue (Editora Contexto, 2009). As posições da esquerda podem ser vistas no discurso oficial governamental e, enfim, nos de vários intelectuais lulistas. Os argumentos dos dois lados não me convenceram.

O argumento dos que estão contra a política de cotas, quando quer se passar por liberal, é o da injustiça. Negros ricos dariam saltos sobre brancos pobres. Todavia, esse argumento esbarra nos dados da realidade: diferente dos Estados Unidos da época dos movimentos pelos Direitos Civis, nosso país, formado por maioria não-branca, ainda não tem uma classe média negra. No Brasil, os negros são pobres. Se um negro rico entrar em uma universidade por conta da política de cotas, com nota menor que um branco, isso será a exceção, não a regra. Algo completamente corrigível. Basta que se faça a ampliação das vagas universitárias, o que não é difícil de ocorrer em um país como o nosso, que tem recursos para aplicar na educação.

É claro que os que estão contra as cotas podem também argumentar que tal política quebra a ordem jurídica liberal – a isonomia perante a lei – e, quando fazemos isso, é necessário saber muito bem o que se coloca no lugar. Pois, em geral, quando substituímos a ordem liberal por outra, o que vem é bem pior do que ela. Todavia, isso também é corrigível. A política de cotas pode ser uma política com data marcada para acabar.

Se os que não querem as cotas podem vir a argumentar que essa política divide a nação em “brancos” e “negros”, e que isso pode gerar conflitos que antes não existiam, temos razões para pensar que tal afirmação é ideológica, errada, pois os conflitos sempre existiram. Não houve no Brasil racismo, mas preconceito sempre existiu. Não vamos criar racismo de reação dos brancos por causa das cotas raciais. Seria necessário algo muito mais ofensivo, bem mais marcante para que uma coisa assim viesse a ocorrer. Para fazer florescer o racismo seria necessário algo capaz de mobilizar ressentimentos avassaladores. Teríamos de ter uma política que alijasse de uma vez os brancos de concursos públicos e coisas assim. Eu mesmo cheguei a pensar que poderia, sim, existir uma reação branca à política de cotas. Mas ela não veio. A população brasileira entendeu bem a situação e tem sido amável a respeito das cotas. Eu estava errado.

Sou favorável à política de cotas como ela vem se desenvolvendo. Todavia, não participo do mesmo discurso da esquerda. Pois o problema da política de cotas não é sua institucionalização, e sim as intenções proferidas pela esquerda. Estas sim, quando postas na mesa, criam reações. Aliás, se o discurso da esquerda fosse outro, menos fora de órbita, talvez não houvesse espaço para um livro como o de Demétrio Magnoli.

A política de cotas não tem eficácia nenhuma do ponto de vista educacional. Ela não serve para melhorar a educação dos negros. Só a escola pública gratuita e de boa qualidade associada a uma boa política de redistribuição de renda é que pode resolver isso. A política de cotas é quantitativa e qualitativa inócua como política educacional. Também ela é um barco furado quanto à “justiça histórica”. Esse tipo fomento à culpa social apenas gera ressentimentos. Não gera ressentimentos na população brasileira, que já não é mais branca, mas cria oportunidades de surgimento de propaganda conservadora por parte de pequenos grupos, alguns dos compradores do livro de Magnoli.

Bom, se assim é, qual é o objetivo real da política de cotas que a torna algo eficaz? Eficaz em que sentido? Uma coisa só: colocar os corpos dos negros em lugares que possam ser vistos tanto quanto os corpos dos brancos já eram ali visíveis. Assim, criando a visibilidade mútua, ampliam-se as chances do respeito e da diminuição do preconceitos. Na prática, a política de cotas é como a política de co-educação dos sexos, que também foi difícil de ser aceita pelas elites, no início do século XX.

Parece pouco, mas não é. O preconceito é parente da inveja, uma doença dos olhos. “A grama do vizinho é mais verde”, eis aí a regra de manifestação da inveja. “O negro não existe aqui, neste terreno, eis a prova de que ele é inferior”, eis aí o motor do preconceito. As cotas fazem os brancos conviverem com os negros em um espaço que, até então, não recebia negros. É uma forma de acelerar a diminuição do preconceito do branco para com o negro e de ampliar o respeito do negro consigo mesmo. Não há como esperar o surgimento de uma classe média negra que, então, viria a ocupar a universidade. Isso seria uma má política para um país que oficialmente já não é mais branco. Houve o cruzamento entre o branco e o negro, e assim mesmo, em vários lugares do país, o corpo do negro não é visível. Um empurrão, com a política de cotas, e eis que iremos superar isso. Em pouco tempo teremos um país mais suave e, então, poderemos falar de democracia racial verdadeiramente.

Caso a esquerda pare de advogar a política de cotas com um discurso errado, talvez possamos despertar menos o ódio conservador que, enfim, não emerge da população em geral, como eu, erradamente, pensei que poderia vir. Com o argumento correto, fica mais fácil não provocar a ira daqueles leitores do professor Demétrio Magnoli ganhos pela sua causa. Ou, no mínimo, evitaremos ter de agüentar mais um livro conservador na praça – um livro tão ideológico quanto a ideologia que diz ter mapeado.