Eleitores pobres de São Paulo elegeram o milionário Dória por escolha consciente

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O PT foi varrido do mapa no estado de São Paulo, com raríssimas exceções como em Araraquara os eleitores disseram não ao PT. Em 23 grandes cidades brasileiras a maioria de cidadãos pobres que precisa de políticas públicas do Estado escolheu votar em milionários para governarem as suas cidades. Escolheu votar em milionários que invadiram terrenos públicos, escolheu votar em milionários que quando à frente de secretarias públicas do Turismo (como a Paulistur e a Embratur) estimularam o turismo sexual, ampliaram suas fortunas com o uso de dinheiro público. Esses milionários se venderam e foram comprados pelos seus eleitores como 'não políticos'.

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Em São Paulo, a classe trabalhadora de origem escravizada elegeu um candidato que promete privatizar até mesmo cemitérios públicos. Pobres terão seus filhos assassinados pela PM, pelo tráfico, por outros adolescentes pobres armados e cooptados pelo tráfico e terão que se virar nos 30 para enterrar seus próprios filhos. Mas mesmo assim, eles celebraram a vitória do empresário João Dória em primeiro turno. Celebraram efusivamente com fogos de artifício, inclusive. Celebraram porque se sentiram contemplados, porque como na final de um campeonato, o seu time de empresário bem sucedido, sonho de todo pobre de direita que acredita no discurso meritocrático, venceu.

Os pobres de direita venceram o petista professor Haddad que construiu 400 creches em 4 anos e alimentou as suas crianças com comida orgânica (que seus pais possivelmente sequer sabem quais benefícios envolvem essa escolha para a saúde de seu/a filho/a). Venceu o petista 'político não profissional' (voltaremos depois a isso) que lotou a cidade de corredores e faixas exclusivas de ônibus e fez o mesmo pobre de direita ganhar algumas horas na ida de casa ao trabalho e do trabalho para casa. Esses trabalhadores pobres de direita não acham que isso é bom. Quem aqui não se lembra do prefeito Haddad em um ônibus na periferia ao constatar que com as faixas exclusivas de ônibus o tempo da viagem dos moradores da zona Leste ao Centro caiu em 1 hora e confiante, Haddad pergunta a uma usuária sobre a melhora, e ela desdenhando a alegria do prefeito diz: "É, mas você viu os carros? Tudo parado na Radial!"

A usuária pobre de direita sonha em ter seu próprio carro e se solidariza com os motoristas individualistas de classe média que não usam transporte público. Ela não quer uma cidade onde a maioria se desloque em menos tempo, ela quer se mover, mesmo que lentamente, dentro do seu próprio automóvel.

Assim, finalmente a esquerda descobriu de que lado está a classe trabalhadora de origem escravizada, sem experiência com a cidadania, num país de história autoritária, cheio de  de rupturas democráticas: ela está ao lado dos golpistas. A classe trabalhadora brasileira de herança escravizada é pragmática, em crises econômicas age com o estômago. Ela elegeu com expressiva votação para ser seu representante na Câmara um jovem negro de direita que é contra cotas para negros e contra qualquer política pública de distribuição de renda. Seu partido, o DEM, entrou até mesmo com ação de inconstitucionalidade no STF contra o PROUNI. Ela elegeu um jovem que participou de manifestações golpistas para derrubar uma presidenta legitimamente eleita e que cujo movimento, o MBL,  foi financiado por partidos de direita que articularam o golpe. Essa classe trabalhadora de origem escravizada elegeu jovens como Holiday não por ignorar o que ele prega, mas exatamente porque ele prega tudo isso.

Esta mesma classe trabalhadora de origem escravizada tinha como alternativa Douglas Belchior, mas ela apostou em Holiday. A classe trabalhadora de herança escravizada no Brasil quer se dar bem como os Holiday. Ela não quer cidadania para todos, para os seus iguais, ela não quer mudanças estruturais, não quer mudanças que beneficiem o coletivo. Ela acredita em meritocracia. Fernando Holiday, o jovem negro do MBL, pode ser acusado de tudo, menos que mentiu ao seu eleitorado. Ele diz claramente que universidades não têm de ter cotas pra negro, ele é contra toda a política pública que beneficie os mais pobres.

A classe trabalhadora brasileira de herança escravizada usa seus sábados arregimentando fiéis para as suas células nas igrejas neopentecostais de promessas de prosperidade. O salário de um pastor com muitas células varia de 8 a 20 mil reais. Ela almeja criar a sua própria igreja dentro deste mercado religioso rentável. Essa mesma classe trabalhadora escravizada tem mais ódio de Dilma que de Cunha, ela diz que Cunha é seu 'malvado favorito', Cunha é o típico político cultuado pelo pobre de direita. Usou a política para enriquecer e sequer foi preso. Ele é esperto, se deu bem.

A classe trabalhadora brasileira de origem escravizada vivendo numa Salvador onde há mais de 50 anos a família ACM manda e desmanda como coronéis escravocratas  reelegeu de bom grado o golpista ACM Neto em primeiro turno com ampla margem de vantagem. Aliás, a classe trabalhadora de Salvador em sua maioria preta (os pardos são minoria na população negra da cidade) nunca elegeu um governo de esquerda a não ser o susto das urnas quando as eleições eram apenas de um turno com Lídice da Mata. Os pobres em Salvador vivem em bairros em condições subumanas: Cajazeiras e os bairros pobres dos morros de Salvador sofrem com a ausência de limpeza pública, quando há greve de ônibus ficam apartados do restante da cidade e mesmo sendo uma cidade onde 70% da população seja preta (considerando os dados do IBGE para a população negra formada de pretos e pardos), é uma cidade profundamente racista e consegue ser mais apartada socialmente que o Rio de Janeiro. O racismo estruturante da sociedade brasileira em Salvador tem uma de suas faces mais crueis: ' o Haiti é aqui' já cantou Caetano.

A esquerda que não faz disputa política do PT

Haddad foi um excelente prefeito. O que ele fez em quatro anos é desconhecido até mesmo da maioria dos petistas. A saúde melhorou sensivelmente. No bairro de periferia onde vivo, em 2012, um guardinha terceirizado fazia fichas dos pacientes, não havia vacinas, não tinha nem impressora no posto de saúde. Eu fiz minha carteira do SUS colando uma etiqueta que comprei na papelaria e escrevendo a mão os meus dados. Haddad construiu 3 UPAS, 3 hospitais e tem mais um licitado, reformou vários hospitais todos na periferia. No meu bairro tem uma UBS licitada que muito possivelmente não será construída.  Haddad fez, mesmo no meio de uma crise econômica uma administração impressionante, aliás ele recuperou quase um bilhão de dinheiro desviado na corrupção de administrações anteriores e investiu esse dinheiro nas periferias para uma população que nunca sonhou com um hospital público no bairro, para bairros inteiros que não tinha uma única creche.

Assim, além das 400 creches e comida orgânica na merenda (num estado onde inúmeras prefeituras nem merenda oferecem às crianças e o governo do Estado está fechando a escolas, Haddad ainda fez universidades nos CEUs). Na área de mobilidade urbana, de preservação à vida, no tratamento aos dependentes químicos, na proteção à mulher,  na área de cultura, enfim é inacreditável o que ele conseguiu fazer em quatro anos. Qualquer brasileiro se tivesse um pouco de paciência e verificasse sua administração ficaria impressionado.

Nas periferias a presença do poder público é crucial. Onde vivo tem um depósito de lixo viciado. Catadores, lumpesinato  e peruas clandestinas jogam entulho e lixo lá todos os dias. Nos tempos de Kassab, eu tinha carro, os ratos roubavam ossos dos cachorros de casa e levavam para o motor do meu carro. Eu tinha de pôr veneno de ratos no motor do carro! Isso porque o lixo se acumulava nesse ponto viciado de descarte e mesmo ligando para o 156 nunca vinha caminhão da prefeitura recolher as montanhas de lixo. Nos tempos de Haddad duas vezes por semana um caminhão da prefeitura faz a limpeza. As praças estão limpas, a iluminação está em dia, há médicos no posto de saúde, merendas saudáveis nas escolas, ônibus passando no horário certo e faixas exclusivas me fizeram ganhar 40 minutos na ida ao trabalho e 40 minutos na volta do trabalho para casa.

Qualquer cidadão com a mínima consciência deve se perguntar, então, por que diabos os maiores beneficiários não viram isso? Por que elegeram e comemoraram a vitória de um milionário que privatizará até mesmo cemitérios???

Tenho uma hipótese: além de os pobres de direita terem orgulho de serem de direita, acreditarem em meritocracia, não terem como uma boa parte da elite de São Paulo nenhum compromisso com um projeto de cidade mais humanizada, o PT de Haddad se orgulha de não ter feito disputa política.

Haddad se orgulha de dizer que é professor e que não é político profissional. E por se negar a fazer disputa política Haddad vai ouvir do pobre de direita: "ganhei uma hora no meu deslocamento de casa ao trabalho todos os dias, mas e os carros"?

Para encerrar, vou mais uma vez contar uma história da recusa de Haddad de fazer disputa política e de achar que fazer uma boa e honesta administração bastasse.

Este ano, no dia 7 de fevereiro, sábado de carnaval, minha casa e todas as casas do bairro ficaram embaixo d'água. Os moradores do meu bairro juram que tem piscinão aqui. Não há. Mas as galerias do córrego da Politécnica que passam até caminhão, estavam limpas. Ou seja, a enchente não foi provocada por entupimento do córrego. O que ocorreu? Por que um lugar onde vivo há 20 anos e nunca encheu, no carnaval de 2016 ficou debaixo d'água? Porque o DAAE, administrado pelo governo de Alckmin, não fez o seu trabalho. A usina de traição do Pinheiros serve entre outras coisas para desviar o curso do rio e evitar que algumas áreas da cidade se alague. Quando a chuva está com grande volume o DAAE tem de monitorar e mudar o curso do rio e o departamento não fez isso no dia 7, não no tempo certo. Fez com muito atraso e permitiu que a água que corre para o Pinheiros ficasse represada e alagasse o bairro inteiro, inclusive em suas áreas mais altas. Quando finalmente o DAAE fez o que deveria ter feito, com a mesma velocidade que a água subiu, ela esvaziou, fazendo redemoinho dentro de casa e levando o restante das minhas coisas. Água de enchente provocada por chuvas não esvazia com esta rapidez, fazendo redemoinho!

O governo do Estado apareceu rapidamente no meu bairro como sempre se faz presente: com a força da repressão. A polícia ameaçando moradores em franco desespero que perderam tudo.

A prefeitura também se mostrou presente, só que para socorrer a população. O secretário de saúde, Alexandre Padilha, organizou medidas emergenciais para prevenir às doenças de enchente, o chefe de gabinete da subprefeitura do Butantã, mesmo ameaçado pela polícia militar e impedido de entrar no bairro, organizou equipes de limpeza para tirar toneladas de entulho das ruas. O vereador petista reeleito, Antonio Donato, foi visitar o bairro, conversamos, falei com ele da necessidade de uma reunião com os atingidos para explicar o que aconteceu. Ele mobilizou a subprefeitura do Butantã que não fez a audiência pública com os moradores e comerciantes do bairro.

Ontem vimos o resultado da administração do melhor prefeito que não fez política: depois da inundação no meu bairro, o poder público municipal ter feito tudo certo: agir na prevenção de doenças, tirar os entulhos da inundação, informar os moradores atingidos que estavam isentos do IPTU etc, não fez política. Abriu mão de fazer disputa política: não explicou à população que tudo que era de responsabilidade da prefeitura foi feito, não informou o que provocou o alagamento do carnaval, que a inundação não foi nem o excesso de chuvas, nem falta de limpeza do córrego e que não existe piscinão na região. O resultado desta escolha eu vi e ouvi ontem na minha rua: moradores celebrando a vitória de Dória e gritando #ForaHaddad.

PS. Para os militantes de esquerda (não apenas ao petistas) preparem-se para um quadro bem pior em 2018, se é que haverá eleições em 2018.

PS2. Um grande intelectual negro do século XIX, o escritor Lima Barreto, dizia: "O Brasil não tem povo, tem massa". A esquerda não conseguiu politizar a massa e torná-la povo. Sequer a classe média escolarizada tem orgulho de sua nacionalidade, é igualmente analfabeta política, não se enxerga como classe trabalhadora e sonha em ser elite, preservando como riqueza seu espírito vira lata. Paulo Freire nunca foi tão atual: quando a classe trabalhadora não tem consciência de classe seu sonho é ser patrão.

PS3. Renato Janine Ribeiro, filósofo, professor da USP e ex-ministro da Educação, fez dois posts mais elegantes e menos duros que meu texto, mas chegou à mesma conclusão:

Post 1

Post 2

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