Enquanto existirem Barbosas e Saletes - Parte 6

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Parte 6

José Arbex Júnior, in revista Caros Amigos, fevereiro de 1999

Deuses comuns no esgoto Tamanduateí

Familiares, colegas e vizinhos dizem que Barbosa era um homem sério, obcecado pelo trabalho. Sandra, que conheceu Barbosa aos quatorze anos, quando se tornou sua primeira namorada, confirma. "Uma vez estávamos passeando de carro e ele quis parar para apartar uma briga. Eu o impedi." Ainda segundo sua mulher, ele sempre quis ser soldado da PM (onde foi admitido em 1994). E o major Marcos Cabral conta que Barbosa havia sido merecedor de vários elogios oficiais na corporação, por atos de coragem e bravura. Apesar de todas as qualidades, Barbosa passava por um momento economicamente difícil. Metade de seu salário na PM era destinada ao pagamento do aluguel (350 reais). Para complementar a renda familiar, tinha de fazer serviços extras, como segurança de empresas privadas. Em outubro, perdeu o "bico" em uma distribuidora de leite, justo quando sua filha Amanda foi acometida de uma grave pneumonia, que provocou derrame pleural.

Se a vida de Barbosa estava solidamente ancorada em suas relações com a família e com o trabalho, Salete tinha uma vida pessoal muito triste, completamente destroçada. Como conseqüência de uma sucessão insuportável de conflitos com seus irmãos e filhas, ela passou a vagar pelas ruas de São Paulo, como catadora de papelão, em setembro. Lúcida, apesar da miséria e da tristeza, disse no hospital duvidar que seus irmãos fossem manifestar qualquer gesto de solidariedade para com ela. "Foram muitas mágoas, muitas brigas. Eu acho que é sem chance, eles não devem aparecer." E nisso ela estava certa. A amargura de se sentir completamente só foi agravada pela culpa, obviamente sem sentido, mas ainda assim muito compreensível, da morte de Barbosa. A culpa de, apesar de tudo, continuar existindo graças à morte de um total e completo desconhecido. É uma dívida grande demais, impossível de ser saldada.

Essa pequena história reproduz todos os elementos presentes nas mitologias de todos os povos de todas as épocas. O heroísmo do guerreiro-soldado, o zelo do pai de família, o amor da mulher, a revelação inesperada do trágico fato consumado pelo oráculo-televisão, a ira impotente dos familiares face ao destino, o sentimento de culpa e desalento da vítima em nome do qual foi feito o sacrifício, o ritual póstumo em homenagem ao herói morto. Os personagens da história são, todos, seres absolutamente comuns que, diante do acaso, revelam a grandeza dos deuses, cujas ações só podem ser corretamente medidas e só adquirem algum sentido se analisadas à luz da maravilhosa e infinita epopéia humana, a qual se manifesta, de maneira surpreendente, nos fatos conjunturais e prosaicos da vida cotidiana. E todos somos assim. Trazemos isso, que é humano, dentro de nós só à espera da ocasião adequada para se manifestar. O ser humano que somos não cabe nas infovias.

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