Hêider Pinto: SAÚDE E DEMOCRACIA

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SAÚDE E DEMOCRACIA Por Hêider Pinto*, especial para o Maria Frô

Há 40 anos profissionais, estudantes, professores, estudiosos, gestores e movimentos populares da área de saúde iniciaram a construção de um movimento que tinha na palavra de ordem “saúde e democracia” a síntese de uma luta que travou no combate à ditadura, na redemocratização do país, no estabelecimento da saúde como “direito de todos e dever do Estado” e na criação do SUS na Constituição de 1988. Mais do que nunca essa palavra de ordem sintetiza a luta atual dos movimentos de saúde para resistir ao golpe que está em curso no país, tanto em sua dimensão política quanto socioeconômica.

No último dia 17 de abril a Câmara de Deputados mais conservadora do período recente, marcada pela corrupção e protagonizando uma sessão que mancha a história de nosso país, autorizou o início de um processo de impeachment ilegal de uma presidenta eleita sobre a qual não pesa nenhum crime de responsabilidade. Mas o processo precisa ainda de maioria simples para ser aceito no Senado e de maioria de dois terços para resultar na cassação do mandato da presidenta. Além disso, o Supremo Tribunal Federal, provocado, poderá validar ou invalidar o processo. Aquilo que dá causa ao golpe não é o discurso demagógico do combate à corrupção. Se o fosse não seria conduzido por pessoas acusadas de corrupção e não teria como parte dos acordos a impunidade e bloqueio de investigações em curso contra sócios do golpe. O que lhe justifica é a política econômica e social que o consórcio de golpistas – parlamentares e partidos, mas fundamentalmente diversos atores e setores da classe economicamente dominante, nacional e internacional, com destaca participação dos grandes monopólios de comunicação - pretende adotar num momento de crise internacional no qual o Brasil passa por uma importante recessão.

O que se propõe é a clássica cartilha do neoliberalismo: desregulamentação de mercados (de produtos, serviços e capitais), privatizações de toda natureza, redução dos custos do trabalho (contrarreforma trabalhista, arrocho salarial e desemprego), redução dos gastos sociais via redução da ação social do Estado (em especial na seguridade social – saúde, assistência e previdência) e, de quebra, transferência ao mercado dessas áreas nas quais o Estado deixaria de atuar.

Essa cartilha nesse contexto é uma gravíssima ameaça ao SUS. No documento “Ponte para o Futuro” se propõe a desvinculação definitiva de receitas, o que bloquearia o avanço da Emenda Constitucional nº1 de 2015, fruto da luta do movimento saúde mais 10; a redução/congelamento do já absolutamente insuficiente recurso público da saúde; e a transferência de ações e serviços de saúde do Estado à iniciativa privada, chamada eufemisticamente de “parceria”.

Estaria nos planos - políticos, econômicos e sociais – do consórcio golpista a produção de uma “tempestade perfeita” para desconstruir o SUS que temos hoje. A satisfação com, a legitimidade e defesa do sistema pela população tenderia a minguar com um sistema ainda mais subfinanciado, com redução de serviços e focalização das ações, aumento da demanda reprimida ante uma oferta maior de pessoas (pela necessidade de saúde agravada pela crise e pelos “expulsos” da cobertura dos planos de saúde empresariais), com aumento do tempo de espera, da filas e do déficit de atendimento.

É a “tempestade” que viabilizaria as proposições pemedebistas na Câmara e no Senado de obrigar que grandes e pequenas empresas paguem Plano de Saúde a seus funcionários, como o Projeto de Emenda Constitucional 451/2014 de autoria de Eduardo Cunha, e de cobrar do cidadão por procedimentos realizados no SUS como está na proposta “Agenda Brasil”. É por tudo isso que a palavra de ordem “Saúde e Democracia” gestada há 40 anos volta a ter um sentido amplo, radical e necessário. Todos aqueles que defendem a saúde como direito e o avanço do SUS precisam resistir ao golpe, em sua dimensão política e social. Defender a democracia é defender a saúde. Daí que os movimentos de saúde precisam se somar à resistência democrática e popular ao golpe.

Mas, é necessário também que os movimentos de saúde ampliem sua capacidade de mobilização e organização. Que mais que se articulem, se enredem e reiventem num exercício de aprofundamento democrático e participativo. Que afirmem, defendam e disputem valores generosos, democráticos, humanistas e socialistas no imaginário social e que esses valores possam ser vistos e sentidos nas práticas cotidianas e luta desses movimentos.

Isso vale para os movimentos e organizações que tiveram importante papel na Reforma Sanitária dos anos 70/80 como a Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva, o Movimento Popular de Saúde, sindicatos e organizações de trabalhadores de saúde, as sessões de saúde dos sindicatos, movimentos, centrais sindicais e partidos progressistas.

Vale para organizações suprapartidárias como os conselhos de secretários de saúde, municipais e estaduais e, sobremaneira, para os conselhos de saúde, no âmbito local, municipal, estadual e nacional, que, como instância de controle social e participação popular conquistada na legislação do SUS, tem importante papel de resistir ao desmonte do sistema,além de já ter mostrado mais de uma vez que cresce em tempos de crise.

E vale também para novas organizações e movimentos que têm surgido ou ganhado novas características e inovado nos modos de participação e ação como: de educação popular, de saúde mental, de saúde das mulheres, população LGBTT, de rua, negra, indígena e do campo, movimento Rede Unida, os médicos populares, os coletivos de saúde dos movimentos estudantil, rural e urbano e os diversos modos de enredamento de grupos que têm se organizado e reforçado a luta em espaços virtuais colaborativos.

Ainda que seja necessária a resistência institucional ao golpe, porque muita luta haverá para impedir que seja consumado, a ação que deverá predominar será a societal nos movimentos, nos serviços, no local de trabalho, nas ruas, no asfalto, no barro ou na mata, na disputa de corações e mentes. É ação de construção de resistência junto ao povo na qual se exige a concretização e ampliação de direitos e se luta fortemente contra qualquer subtração de algo já conquistado. É por isso que defender a saúde é também defender a democracia, radicalizar a democracia, lutar por uma democracia de alta intensidade, disputar o conteúdo da democracia, ocupar a democracia.

Hêider Pinto é Médico Mestre em Saúde Coletiva