O velho menino de Gaza e o mar

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Agradeço a Caia Fittipaldi mais uma vez pela pronta tradução de texto tão belo.

A minha dor, quando leio a descrição tão preciosa de Ramzy Baroud é a da impotência, é a de reconhecer como, enquanto humanidade, somos impotentes e incompetentes diante dos senhores da guerra, por não conseguirmos mudar esta situação tão grotesca que nega o direito básico de ir e vir aos palestinos, além de todos os outros direitos.

Se eu tivesse poder, eu tornaria obrigatório em Israel a leitura de autores como Baroud. Tenho certeza de que as crianças israelenses cresceriam adultos de mentes sãs e não elegeriam mais senhores da morte para governar os israelenses igualmente oprimidos pelo medo, igualmente cativos do terror.

Por: Ramzy Baroud* no  Asia Times Online 8/6/2010 [no continente asiático já é 8 de junho :)]

Nasci e cresci à beira do mar de Gaza. Nunca, na minha infância entendi como aquela água imensa, que prometida liberdade sem fim, servia também como limite intransponível de terra tão pequena e tão apinhada de gente – terra e gente que sempre, perpetuamente, vivia como reféns, por mais que perpetuamente sempre tenham vivido em estado de resistência.

Desde menino, fazíamos, minha família e eu, a pequena viagem, do campo de concentração de refugiados onde vivíamos, até a praia. Íamos numa carroça velha, laboriosamente puxada por um burrico também velho. No momento em que nossos pés tocavam a areia morna, começava a gritaria. Os pés das crianças corriam mais rápidos que campeões olímpicos e, por algumas horas, todas as preocupações desapareciam. Ali não havia ocupação, nem prisão, nem status de refugiados. Tudo tinha cheiro e gosto de sal e melancias. Minha mãe sentava-se sobre um lençol remendado, para impedir que voasse. E ria dos gritos do meu pai, tentando impedir que as crianças avançassem muito no mar.

Eu mergulhava, cabeça embaixo d’água e ouvia o barulho do mar. Depois levantava a cabeça, dava as costas à praia e olhava em frente, na direção do horizonte.

Aos cinco, seis anos, acreditava que logo adiante, depois do horizonte, havia um país chamado Austrália. As pessoas lá viviam livres, podia ir e voltar quanto quisessem. Não havia soldados, nem armas, nem atiradores emboscados. Os australianos – por alguma razão inexplicada – gostavam de nós e um dia apareceriam para nos visitar. Falei dessas ideias aos meus irmãos, mas ninguém se convenceu a esperar por eles. Minha fantasia cresceu, mesmo assim, como logo aumentou a lista de outros países que havia lá, depois do horizonte. Um desses países chamava-se EUA e as pessoas falavam engraçado. Havia também uma França, onde as pessoas só comiam queijo.

Eu vasculhava a areia, à procura de “provas” da existência de outro mundo depois do horizonte. Procurava garrafas com letras estranhas, latas, plástico que a maré trazia dos barcos que passavam distantes. Minha maior felicidade era encontrar letras em árabe, que tentava empenhadamente ler. Assim aprendi que havia países como Arábia Saudita, Argélia e Marrocos. Lá viviam árabes como nós, e muçulmanos que rezavam cinco vezes ao dia. Mistérios. O mar, pelo visto, era mais misterioso do que se podia imaginar.

Antes do primeiro levante dos palestinos em 1987, a praia de Gaza ainda não fora declarada zona militar proibida. Os pescadores ainda podiam pescar, embora só numa área restrita e bem limitada. Podíamos nadar e fazer piqueniques, embora só até às 6h da tarde. Até que um dia, chegaram os jipes com soldados israelenses, sirenes tocando pela estrada asfaltada, e cercaram a praia, separando-a do campo de refugiados. Apontaram armas e exigiram imediata evacuação. Meus pais gritaram assustados, e nos fizeram correr de volta para o campo, sem nem nos vestir, só de calções de banho.

A televisão israelense anunciou em seguida que a Marinha de Israel havia interceptado terroristas palestinos, em barcos de borracha, que tentavam invadir Israel. Todos foram mortos ou capturados, exceto os que poderiam estar ainda a caminho das praias de Gaza. A confusão, para mim, foi terrível. As imagens mostravam imagens dos palestinos presos. Eles choravam ao lado dos corpos dos camaradas palestinos mortos, cercados por soldados israelenses armados, que festejavam, triunfantes.

Tentei convencer meu pai a irmos até a praia, para esperar os outros palestinos. Ele sorriu triste e não respondeu. Mais tarde, a televisão informou que não haviam sido encontrados; que se haviam perdido no mar, ou naufragado. Nem assim perdi a esperança. Pedi que minha mãe preparasse seu famoso chá com menta e sanduíches de pão e queijo. E esperei até a manhã seguinte, que os “terroristas” perdidos no mar chegassem ao nosso campo de refugiados. Se chegassem, queria que encontrassem o que comer. Mas nunca chegaram.

Depois desse dia, nunca mais faltaram barcos no horizonte. Todos da marinha israelense. O aparentemente pacífico mar de Gaza, era agora fonte de infinitos perigos, mas também de possibilidades. Então, aumentaram minhas idas até a praia. Mesmo depois de crescido, e mesmo durante os toques-de-recolher dos israelenses, eu conseguia ver alguma coisa: subia ao telhado de nossa casa e examinava o horizonte. De algum lugar, algum dia, algum barco chegaria a Gaza. E quanto mais difícil ficava a vida, mais aumentava minha fé.

Hoje, décadas adiante, olho um outro mar, distante, muito distante do mar de Gaza onde nasci. Já não tenho direito de pisar na Palestina há muitos anos. Olho o mar, aqui, e penso nos outros, em casa, à espera da chegada dos barcos. Dessa vez, há possibilidade real de que chegue algum barco. Acompanho o noticiário, com lucidez de adulto e, também, com a emoção, a trepidação dos meus seis anos. Imagino a Flotilha da Liberdade carregada de comida, remédios, brinquedos, logo ali, depois do horizonte, chegando, chegando, fazendo realidade o velho sonho. O sonho de que todos os países em cuja existência eu acreditava, embora meus irmãos repetissem que não, não, não existem, são ficção, sim, sim, existem; e chegarão, sob a forma de cinco navios e 700 ativistas da paz. Representam a humanidade, pensam em nós. Pensei em quantos, lá, naquela noite, podendo, prepararam alguma comida, para alimentá-los quando chegassem, e à espera deles.

Quando começaram a chegar as notícias de que os barcos haviam sido atacados antes até de cruzarem o horizonte de Gaza, que havia ativistas mortos e feridos, o menino de seis anos que sobrevive em mim, encolheu-se de dor. Chorei. Mal conseguia falar. Nenhuma análise política daria conta daquilo. Nenhuma notícia de televisão conseguirá explicar aos meninos que hoje têm seis anos em Gaza, que seus heróis foram assassinados e sequestrados, simplesmente porque queriam abrir o horizonte.

Mas, apesar da dor que é agora mais profunda, desceu para bem dentro de mim, e das vidas ceifadas, e das lágrimas que, em todo o mundo, se choram hoje pela Flotilha da Liberdade, sei agora que minhas fantasias não eram sonho de criança. Havia, nos barcos, gente da Austrália, da França, da Turquia, do Marrocos, da Argélia, dos EUA e de muitos outros países, que vinham em nossa direção em barcos carregados de presentes de outros muitos, que, por alguma razão, ainda pensam em nós e nos amam.

Mal posso esperar para chegar a Gaza, a bordo de outro barco, e dizer aos meus irmãos: “Viram, só? Eu sabia!”

*Ramzy Baroud é jornalista, escreve em vários jornais do mundo. É editor de PalestineChronicle.com. Seu livro mais recente é My Father Was a Freedom Fighter: Gaza's Untold Story [Meu pai foi combatente pela liberdade: a história não contada de Gaza]. (Pluto Press, London), disponível em Amazon.com.