Os mitos de Obama e Osama

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Os mitos de Obama e Osama Larbi Sadiki, Al-Jazeera, Qatar, tradução: Vila Vudu 2/5/2011

Os nomes de Obama e Osama estão, doravante, associados para sempre. Obama, o caçador, é presidente da nação mais poderosa e mais temida do planeta. Osama, a caça, foi líder de um estado sem fronteiras – ator sem estado – e provavelmente da mais temida associação político-religiosa do mundo moderno desde o tempo dos assassinos Hashashin nos séculos 11 e 13. Obama e Osama rimam, mas essa não é a única correlação entre ambos.

A síndrome de Pigmalião

Nos dois, vive um Pigmalião. Em certa medida, são escultores[1].

Cada um a seu modo, esses dois escultores, Obama e Osama, são exemplos de como homens extraordinários – se dominados pelo poder de ideias, ideais e sonhos, seja por que for –, não resistem a tentar esculpir suas Galateias, sejam estátuas, simulacros, arremedos ou fantoches. Cada um dos dois vive enamorado de uma visão estatuária, um conjunto de ideais ou sonhos aos quais procuram insuflar vida.

Não fosse assim, como se explicaria que um homem que poderia viver cercado de ninfas, Bentleys, iates e tudo que o dinheiro pode comprar, escolha as “ilusórias” –parafraseando Marx – recompensas da vida eterna? Osama poderia viver a vida como a vive o príncipe saudita Al-Walid bin Talal. E é onde intriga e fecha-se em mistério. Só o poder da fé explica.

Não completamente diferente de Osama na compleição física e na “alteridade”, Obama também confunde e surpreende. Por excelência cidadão hifenizado dos EUA, lá está hoje, na Casa Branca. Nem a cor da pele nem as raízes familiares, nem a possivelmente reprimida identidade islâmica o impediram de conhecer, como mestre, a arte da autoescultura pessoal e pública.

Obama e Osama, ícones

Ambos são icônicos, contudo, por diferentes razões. Ambos são construídos de discursos muito variados. E o que é construído é também desconstruído, conforme o viés que se escolha.

Na verdade, os dois homens pertencem a mundos diametralmente opostos e a aparências de mundos também opostas. Mas os dois são construtos sociais, e o estatuto icônico que alcançam os dois conjura espectro amplo de sentimentos humanos que vão do amor ao ódio, da admiração à desconfiança.

Já algumas vezes Obama sentiu-se forçado a defender sua “americanidade” ante os que duvidavam dela, e muito recentemente até o próprio nascimento, em resposta a Donald Trump.

Quando a “Guerra Santa” era bandeira de Reagan, na guerra contra os ex-soviéticos nos campos de morte do Afeganistão, Osama foi abraçado e honrado como herói saudita aliado. Depois do 11/9, foi desonrado, e toda a sua linhagem iemenita marcou o novo discurso orientado para reinventar, ou reescrever, a identidade “bin Laden”.

Osama e Obama, ambos, lutam para insuflar o sopro da vida em suas respectivas Galateias. Em Obama, os princípios são um mix de esquerda e direita, de centrismo e progressismo, costurado com muito liberalismo. A Galateia de Osama é escultura cujo marfim é uma escatologia e exegese remendada com uma interpretação salafi-wahhabista do Islã.

Arqueologia do poder

Sejam Pigmaleões ou Narcisos, Obama e Osama partilham uma mesma visão realista de como o poder deve ser exercido. Por isso, o Estado de Obama, tanto quanto o Estado-sem-base [literalmente, Qaeda traduz-se por “a base”] de Osama, são sempre vergonhosa exibição de violência. Ambos pois perdem-se de amores por uma Galateia que é presa de uma sempre incontida arqueologia de morte e geração de guerras.

Independente de serem vítimas ou carrascos, ambos são pasto das ideias e ideais pelos quais se perdem de amor. E na busca dessas ideias e ideais – a transcendência divina, no caso de Osama; ou o modernismo e o capitalismo que Obama ama como ama Deus –, constroem mitos, guardas, armas e as respectivas linguagens, caso a caso. Esses são os ornamentos do poder, com os quais os dois adornam suas Galateias,

É, Osama é culpado de assassinato em massa. Os 3.000 mortos nos EUA e sua leitura falsificada do Islã que gera confusão para xiitas e sunitas. Os muçulmanos que celebram os atos de assassinato em massa de bin Laden são culpados por associação. Os doutores do Islã deveriam ter declarado nula a era de guerra dentro do Islã e a aceitação do não-Islã, sem fundamento no Corão nem em muitas exegeses em diversas escolas do pensamento muçulmano. A Galateia de Osama foi esculpida, convenientemente, sem qualquer amor pela “defesa” da “Umma” – a comunidade islâmica global.

Para esse fim, Osama esculpiu não um objeto de amor, mas talvez uma contrabarbárie lançada contra a barbárie que ele crê que os capitalistas, os secularistas e seus fregueses lançaram contra sua “Umma” – como se ele fosse “comandante dos fiéis”.

Obama, comandante-em-chefe por dever de ofício, movido por outro tipo de fé, talvez não tão culpado quanto seu predecessor nas grotescas violações de direitos humanos no Iraque e no Afeganistão, mas ele também esculpiu sua barbárie, feita da mistura de mitos convergentes (pela pátria, a soberania, os compatriotas, Deus, o liberalismo, a democracia) – uma espécie de “amor” – em nome da civilidade.

Países foram invadidos (no governo Bush), as invasões foram mantidas por Obama, foi preciso inventar um sistema de encarceramento (Guantanamo Bay), também mantido por Obama – e uma guerra contra o “terror”, sem sentido algum, autorizada pelos neoconservadores e mantida, em nome de ideia similar de amor à pátria e à santidade da pátria.

Contemplem, não celebrem

Muitos muçulmanos celebraram quando Osama infligiu dor aos EUA. Foi errado. Número muito maior não celebrou. Hoje, os papéis se invertem: americanos celebraram as notícias da morte de Osama [e, a crer-se na ‘mídia’, todos os americanos celebram! (NTs)].

O assassinato de Osama foi segredo que o governo Obama escondeu muito bem, do mundo inteiro, até depois do casamento de William e Kate em Londres.

Os americanos que celebrem o quanto queiram, se quiserem. Mas eles têm também uma oportunidade para alguma contemplação. As vidas norte-americanas – sem contar números – têm de ser postas em termos de igual valor, igual importância que todas as vidas humanas, sem considerar cor, etnia, nacionalidade ou religião.

Quando os governantes que os norte-americanos elegem apóiam ditadores – Mubarak, Ben Ali, Abdallah Al-Saleh, até Gaddafi – armam ditadores, protegem ditadores, garantem-lhes legitimidade que não merecem e lhes dão dinheiro, é hora de os norte-americanos contemplarem as consequências dos atos dos governos que eles democraticamente põem na Casa Branca.

Dentre essas consequências, lá estão os regimes que torturam, que matam, que exilam, que excluem, as guerras por contágio – em Gaza e no Líbano –, a invasão do Iraque, os sistemas de sigilo, os muitos segredos, os voos secretos para entregar prisioneiros a ditadores para serem (mais) torturados, as prisões sem acusação e processo – e de todas essas culpas todos os norte-americanos são culpados, diretamente ou por associação.

A celebração dos norte-americanos será mais significativa, se atentarem para o mal que há na indiferença ou na ignorância de sucessivos governos eleitos, em graus diferentes e em circunstâncias diferentes, de todos os atos cometidos em nome dos norte-americanos, causados por mitos que eles tanto prezam e amam – mas sobre os quais raramente pensam.

Celebrar inimigo morto – sem autorreflexão – vale menos que celebrar uma vitória em jogo de futebol.

Osama nunca mais. O Islã não é Osama

Revoluções árabes eclodiram e triunfaram na Tunísia e no Egito, o que soterrou em parte a Galatea de Osama. Em certa medida, aquelas revolução demonstraram vividamente que “aceitar o Islã” não implica sede de sangue, mas sede de liberdade.

Hoje Osama jaz, corpo sem alma, troféu já sendo desfilado como símbolo de uma vitória oca. Mais um cadáver na procissão de incontáveis cadáveres que brotam da  mesma hubris, em duelo no qual ninguém é inocente.

A morte de Osama deve dar – e esperemos que dê – a árabes e muçulmanos uma chance para arrancarem-se do caos e da violência, e um momento para darem-se conta de que as jornadas de Osama livraram-nos dos soviéticos, mas os entregaram a sistemas de linguagem, prisão, cerco e violência que nem os EUA e seus aliados jamais derrotarão.

Nesse impasse, já aparecem novas vozes e novas forças do Islã, a empurrar os muros da liberdade na direção da conclusão mais lógica: um Islã de amor, com novas concepções de Galateia – com tolerância, boa governança, tratamento humano para todos, governos transparentes, concorrência livre e justa, políticas de respeito a todos sem ver gênero ou raça, e partilha justa do bolo econômico. Para mostrar que os muçulmanos vivem em estado de amor, sob um belo Islã.

Nessa linha, estão surgindo Essam El-Iryan, Abd Elmounim Abou El-Futuh e Mohammed Mursi, dentre outros, sugerindo novas possibilidades para aproximar o Islã e a visão do que seja a política, de uma perspectiva muçulmana.

Não um fim, mas novo começo

Por hora, encerrou-se um capítulo do livro das relações entre EUA e o mundo árabe. Nesse capítulo, Obama assassinou Osama.

Para Osama, está escrito no santo Corão: “Diz: O Anjo da Morte encarregado de vós encaminhará vossas almas. E então sereis trazidos de volta ao Senhor”. Ali Osama aguarda julgamento.

Para Obama, ele matou Osama – não importa se legalmente, ou ilegalmente.

O ponto é que esse momento só encontrará seu melhor significado, se os fantasmas do ódio, da hubris, da violência forem enterrados com os mortos – com Osama – e se troque para sempre por busca de reconciliação e cura coletiva, a caça às bruxas muçulmanas ou aos Osamas que reencarnem pelo mundo. E que nos dediquemos a esculpir uma Galatea coletiva, feita a milhões de mãos, construída de novos futuros, novas compreensões e novas possibilidades...

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[1]Sobre o mito de Pigmalião e Galateia, ver aqui [NTs]. Aqui, vê-se a Galateia de Salvador Dali [NTs].

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