Pepe Escobar: “Liberdade ou morte”

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Print Al Jazeera às 16:25, horário de Brasília

“Liberdade ou morte*

Por: Pepe Escobar, Asia Times Online Tradução: Vila Vodu

12/2/2011

Anunciei que permaneço no posto e que continuarei a arcar com minhas responsabilidades.

[Presidente Hosni Mubarak]

Vamos arrancá-lo daí!

[Cantado, na praça Tahrir]

O que deve fazer uma revolução, quando esperava que um ditador decrépito arrumasse as malas e partisse, ao vivo, pela al-Jazeera? Principalmente quando, horas antes, esperava um golpe militar?

“Voltar para casa”? Pode esquecer.

O fantasmagórico faraó Mubarak é de fato uma inamovível velha estátua enterrada nas areias do deserto. “Fui bem claro”? As reformas serão “implementadas por nossas forças armadas”? Artigo 179 – base da lei de emergência – será alterado, quem sabe, algum dia? Vagos poderes garantidos ao vice-presidente Omar “Sheikh al-Tortura” Suleiman?

(A fala deliberadamente vaga do octogenário presidente Hosni Mubarak significava qualquer coisa, de “delegar poder” – não todo o poder – a “delegar as autoridades” de presidente, a tal ponto que o embaixador do Egito nos EUA teve de telefonar à CNN para explicar que Mubarak passou a ser presidente de direito, com Suleiman como presidente de fato. Tradução: Mubarak virou fantasma oficial. Cabeça de fantoche. Ou, sabe-se lá, nada disso.)

Noutro registro, a ditadura militar (Suleiman, o ministro da Defesa marechal-de-campo Mohammed Hussein Tantawi e o comandante do exército tenente-general Sami Annan) esteve em todas as bocas ao longo dessa 5ª-feira. E nada fez sentido.

Então veio o “Sheikh al-Tortura”, sinistro feito ator B em papel de Nosferatu. Como se o Sheikh al-Tortura anunciasse que, dali em diante, todas as práticas monstruosas que ele  supervisiona seriam conduzidas ordeiramente, para serem mais democráticas. Abrimos “as portas do diálogo”? “Não ouçam” a “subversão” das “redes de televisão por satélite”? “Voltem para casa”? A mesma conversa ‘nós, ou o caos’? O Sheikh al-Tortura pelo menos não trocou de fantasia. Afinal de contas, já ameaçara soltar “as bestas feras da noite... para aterrorizar as pessoas”. A rua sabe que ele mal se aguenta de vontade de pôr-se a matar à moda medieval.

O regime como um todo ameaçara que o exército imporia lei marcial. O ministro do Exterior Ahmed Aboul Gheit disse à rede al-Arabiyya que “queremos que as forças armadas assumam a responsabilidade por estabilizar a nação mediante lei marcial, com o exército nas ruas”.

Essam al-Erian da Fraternidade Muçulmana temia que o exército estivesse preparando o golpe. O New York Times, em mais um característico surto de amnésia, destacou que “Os militares planejam assumir o controle” (os militares jamais saíram do governo em toda a história moderna do Egito).

Apesar daquele Nilo de esperanças, a rua não sabia se se preparava para uma grande festa ou para um banho de sangue. No fim, nem  uma nem outro.

O Alto Comando Egípcio – o importante é que sem Mubarak e Suleiman – havia lançado um bayan raqm wahad (“Declaração n. 1”, em árabe), coisa que, no mundo árabe é a expressão-código para golpe militar. A declaração, a duras penas, anunciava “apoio às legítimas demandas do povo”. É a ideia que têm para um novo brilhante futuro para o Egito (idade média no país: 24 anos); comunicado vagabundo.

Fato é que parte da rua considerava um “golpe de transição” melhor do que um Sheikh-al-Tortura de transição. A rua já havia deixado claro que não aceitaria governo de transição chefiado pelo Sheikh al-Tortura – vulgo mubarakismo com maquiagem leve.

Ontem, o próprio Mubarak anunciou que passava o bastão para o Sheikh al-Tortura – mas talvez não. Assim, do ponto de vista da rua, preparou-se o cenário para “negociações” controladas pelo regime. A rua sabe que Suleiman manipulará essas conversações como perfeita cobertura para impor-se, maquiagem leve, e perpetuar o regime dos torturadores. Adeus, democracia. Afinal, o Sheikh al-Tortura em pessoa já disse que o Egito não está preparado para a democracia.

E o exército? Saiu de cena? Rachou?

Antes da dupla aparição Mubarak/Suleiman na televisão estatal, o boato mais quente que circulava no Cairo dizia que Washington não economizou conversas e ameaças para conseguir que Mubarak transferisse seus poderes – todos – para Suleiman. Annan e uma maioria de altos oficiais militares se opunham à proposta de Washington, mas os comandantes da Força Aérea e da Guarda Republicana aprovavam. Tantawi sentou no muro. Dica de cocheira, era que Annan venceria.

Até agora, não venceu. O exército se dividirá? Imediatamente depois da fala de Mubarak, muita gente no Cairo começou a receber mensagens de texto nos celulares, do Alto Comando do Egito, dizendo que estavam “monitorando” a situação e “decidiremos como agir” – mensagem mais ambígua nunca houve. Demora, até construírem o comunicado n. 2.

Tudo sugere que esteja em curso uma dura guerra civil palaciana no Cairo. Talvez uma dupla divisão: dentro da ditadura militar (o exército contra os serviços secretos militares), mais o exército contra Mubarak. É receita certa de banho de sangue a qualquer momento. O exército não pode continuar a fazer jogo duplo e assistir à disputa sentado no muro. Restou à rua a estratégia de aumentar ao máximo a pressão sobre os comandantes militares e os soldados recrutas, para obrigá-los a alinhar-se com a democracia.

Enquanto isso, a narrativa dominante em Washington é que a Casa Branca foi outra vez horrorosamente humilhada por um sátrapa. Há precedentes, como já escrevemos, do primeiro-ministro de Israel Benjamin Netanyahu ao presidente do Paquistão. Mas considerando as apostas estratosfericamente altas, Washington, Telavive e Riad estão, mais ou menos, conseguindo o que queriam, tendo apostado no pangaré da “transição ordeira”.

Até agora, estão com o Sheikh al-Tortura como novo rais de fato; com Mubarak como fantasma, cabeça-sem-mula, ou manobrador invisível de fantoches, e o exército, pelo menos teoricamente está apoiando o novo homem forte. O único detalhe que não se considerou é o povo.

Interessante é que a rede al-Arabiyya – que é a voz amplificada da Casa de Saud – sabia exatamente o que Mubarak diria, desde, pelo menos, uma hora antes de o discurso ir ao ar. O resto do mundo, a Casa Branca e a CIA-EUA inclusive, tinha certeza de que ele renunciaria.

Num plano paralelo, o mais próximo que Barack Obama dos EUA jamais chegou de apoiar com clareza o poder popular, ou quase, é uma frase patética, da declaração feita depois do fiasco de Mubarak/Suleiman pela televisão, em que disse que “os que exerceram o direito de reunir-se pacificamente (...) são amplamente representativos da sociedade egípcia”. Mr. President, a rua egípcia está de olho no senhor.

A bola maior-que-a-vida voltou para o campo da rua egípcia. A luta agora é conseguir o completo desmonte da polícia secreta. Nas palavras de muitos manifestantes na praça Tahrir: “Liberdade ou morte”. É possível que o Egito arda, porque o regime está apostando no incêndio. O que deve fazer a revolução? Avançar sobre a Bastilha, ou insistir na resistência passiva sem fim? Vá para o lado que for, o tempo de liberdade ou morte é hoje. (grifos nossos)

(1) Orig. “Give me liberty or give me death”. É frase atribuída a Patrick Henry (1736-1799), um dos Pais Fundadores dos EUA, orador e político que liderou o movimento de independência da Virgínia, nos anos 1770s. É frase muito conhecida nos EUA (uma espécie de “Independência ou Morte” no Brasil). Uma versão do discurso, datado de 23/3/1775 (em inglês), pode ser lida aqui [NTs].