Por que será que os conservadores estão se articulando?

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Já começou a invasão em minha caixa de correio de uma série de textos que, em minha opinião, representa um grupo facilmente identificado na sociedade, que denomino de conservador, por desejar manter os privilégios de uma sociedade que segrega uma imensa maioria de excluídos de seus direitos básicos de cidadania e por temer ver abalada a base de seus privilégios historicamente assegurados.

O jurista Ives Gandra Martins em Terra de privilégios: Cota racial é forma de discriminação imposta pela lei, publicado em vários órgãos da grande imprensa e reproduzido em sites jurídicos e outros blogs dos que são contrários às políticas de ações afirmativas, concluiu:
"Como modesto advogado, cidadão comum e branco, sinto-me discriminado e cada vez com menos espaço, nesta terra de castas e privilégios."
Minha questão para o jurista é: Terra de castas e privilégios, com toda a certeza, mas garantidos secularmente a quem, 'cara pálida'?
Toda essa movimentação de textos conservadores aqui e ali, reproduzidos na mídia corporativa, em revistas jurídicas conservadoras em blogs que também têm uma postura conservadora e que louvam os textos de Gandra para mim ficaram claros quando soube que neste ano de 120 anos de abolição formal da escravatura há uma vontade política de ser pôr em pauta novamente a discussão do projeto de Paulo Paim, o Estatuto de Igualdade Racial.Vejamos a notícia recebida ontem, enviada pelo coletivo de Mulheres Negras do Rio de Janeiro e por Memória Lélia Gonzalez:

Carlos Santana preside comissão sobre igualdade racial

O deputado Carlos Santana (PT-RJ) foi eleito ontem, presidente da comissão especial que vai analisar as propostas sobre igualdade racial em tramitação na Câmara, em especial o Estatuto da Igualdade Racial (PL 6264/05). De acordo com Carlos Santana, também presidente da Frente Parlamentar da Igualdade Racial, a expectativa é de que o Estatuto da Igualdade Racial possa ser aprovado ainda em 2008.

"Esse é um ano com muito simbolismo para os afrodescendentes, quando se completam 120 anos da abolição da escravatura no Brasil. Queremos que essa comissão promova um amplo debate sobre os temas relacionados à igualdade racial e vamos ouvir todos os setores envolvidos, porque essa é uma luta de toda a sociedade brasileira. O Estatuto será um instrumento para todos os afrodescendentes e espero que a Câmara faça justiça e aprove essa proposta", frisou Santana.

Estatuto - O projeto que trata do Estatuto da Igualdade Racial, é de autoria do senador Paulo Paim (PT-RS) e tem por objetivo estabelecer mecanismos de combate ao racismo e de inserir a dimensão racial nas políticas públicas do Brasil. O relator da comissão especial será o deputado Antonio Roberto (PV-MG). Também integram o colegiado os seguintes deputados petistas: Janete Rocha Pietá (SP), Vicentinho (SP), Dr. Rosinha (PR), e Gilmar Machado (MG).

A deputada Janete Rocha Pietá ressaltou a importância da comissão especial na medida em que "o Estado brasileiro tem uma dívida com os negros e negras que têm dado uma contribuição fundamental para a construção do Brasil, mas que sofrem, em sua maioria, com as piores condições de vida".

Quero saber se aqueles que não se consideram conservadores, que afirmam estar afinados com os movimentos sociais, que se dizem contrário aos interesses que a mídia corporativa defendem vão sair de cima do muro e assumir uma posição clara (ou seria 'empretecida') nesta luta.

Esse ano comemoraremos os 120 anos da abolição legal da escravatura em nosso país. Mais de um século se passou e ainda temos enormes disparidades sociais que afetam diretamente a maioria da população negra e brasileira.Particularmente sobre o estabelecimento da política de cotas nas universidades eu gostaria de argumentar que como o polêmico tema do Bolsa- Família que já conta com uma bibliografia e estudos de mais de duas décadas, ressaltando que os primeiros programas de renda mínima e de transferência de renda direta foram implementados em 1995 e reorganizados a partir de 2003, também existem vários pesquisadores sérios estudando as universidades do país que implementaram a política de cotas.

É preciso conhecer esses estudos, eles são reveladores. De modo geral, os alunos cotistas AUMENTAM a média dos cursos que freqüentam ao invés de diminuir a qualidade dos cursos como costuma propalar os detratores e contrários às políticas de ações afirmativas.Vejamos:
Resultado afirmativo
(Fábio de Castro)
Agência FAPESP – Um estudo feito por pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) entre 2003 e 2005 revelou que estudantes provenientes de escolas públicas têm maior potencial acadêmico do que os das escolas privadas, demonstrando melhor desempenho ao longo do curso.
A pesquisa ajudou a orientar a criação do programa de ação afirmativa adotado pela Unicamp em 2004 e, desde então, os autores têm feito o acompanhamento semestral do desempenho dos alunos, utilizando a mesma metodologia.
A conclusão preliminar do acompanhamento é que a medida efetivamente aumentou a porcentagem dos egressos de escolas públicas na universidade, especialmente nos cursos de alta demanda, garantindo a presença de estudantes de pior condição socioeconômica e melhor potencial acadêmico.
(...)
Eqüidade em estudo
O estudo começou em 2003, quando o debate público sobre políticas de ação afirmativa ganhava corpo diante da constatação de que a maior parte dos alunos das melhores universidades vinha de escolas privadas. Na Unicamp, a proporção de estudantes nessas condições era de cerca de 70%.
“A reitoria consultou a comissão responsável pelo vestibular, da qual eu faço parte, sobre a existência de estudos que justificassem academicamente as políticas de ação afirmativa. Como não havia estudos detalhados, coube a nós tomar a iniciativa”, disse Pedrosa.
Pedrosa e Carvalho avaliaram então o desempenho dos cerca de 7 mil estudantes que ingressaram na universidade entre 1994 e 1997 – a maioria dos quais, à época do estudo, em vias de formatura –, comparando a colocação dos alunos no vestibular à colocação alcançada na média total das notas ao fim do curso.
Segundo o professor do Imecc, a comparação indicou que os estudantes provenientes da rede pública melhoravam de posição ao fim do curso, em relação aos estudantes vindos de escolas privadas. Cada curso foi avaliado separadamente.
“Percebendo essa diferença favorável aos estudantes da re de pública, fizemos uma modelagem mais detalhada, transportando a experiência de Norberto Dachs na área de estatística em eqüidade em saúde para observar a questão da eqüidade em educação”, explicou.

Pedrosa ressalta que o programa de ação afirmativa, implantado já no vestibular de 2005, não foi diretamente derivado da pesquisa, mas serviu para justificar a adoção e determinar aspectos como, por exemplo, o número de pontos a ser acrescentado à nota do estudante egresso da rede pública.
“Nossa estimativa é que, com a variabilidade estatística da nota, os alunos cujas notas diferem em 10 ou 20 pontos estão, na prática, empatados. Por isso o programa acrescenta 30 pontos aos alunos de rede pública e mais 10 para os pretos, pardos ou índios nessas condições”, disse. (...)
A interpretação dos pesquisadores para esse fato é que esses alunos – da escola pública e de camada socioeconômica mais desfavorecida – tinham um potencial acadêmico não desenvolvido e, quando eram colocados em igualdade de condições, tinham desempenho acima dos demais.
“Seria possível também fazer uma interpretação antropológica, concluindo que o ambiente da escola pública, mais hostil e adverso, torna o aluno mais determinado a se superar ao chegar ao ambiente aberto da universidade”, sugeriu Pedrosa.

Trecho da matéria Resultado afirmativo. Boletim Agência Fapesp, 14 mar. 2008. Observação: O artigo Academic performance, students' background and affirmative action at a Brazilian research university, de Renato Pedrosa e outros, pode ser lido por assinantes da Higher Education Management and Policy (vol. 19 – nº3).
Para quem não está familiarizado com o sistema de ações afirmativas do vestibular da Unicamp, ele reúne o critério socioeconômico e o étnico-racial.

Dando uma explicação bem simples, que todo negro pobre sabe de cor: não basta ser bom, para conseguir um mínimo de respeito é preciso ser melhor que os demais.

O estudo da Unicamp não é único, há vários outros que nos mostram que os alunos cotistas têm se saído melhor em seu desempenho acadêmico, basta a garantia da eqüidade no vestibular. Exemplos não faltam: o melhor aluno da turma de japonês em uma universidade pública do Rio de Janeiro ganha bolsa pra estudar no Japão e uma série de outros casos que mostram que esses meninos e meninas não estão de brincadeira.

É falacioso argumentar que o sistema de cotas fere a Constituição, na medida em que o Estado pode e deve fazer discriminação positiva quando for necessária a sua interferência para vencer desigualdades estruturantes e historicamente construídas. Um Estado democrático que se preze tem de fazer valer o universalismo, garantindo eqüidade a partir de ações afirmativas.

Já faz tempo que venho argumentando com pessoas esclarecidas que são contrárias às cotas 'estabelecidas de cima para baixo' ou que são contrárias 'por ser uma cópia dos EUA'. O que essas pessoas ignoram é que esta não é uma medida de cima para baixo e nem uma cópia estadunidense.

Se há méritos neste atual governo, um deles é o de ter menos cinismo em relações às demandas históricas do movimentos sociais; é o de buscar ao menos ouvir reivindicações seculares e às vezes legitimá-las em leis, como ocorreu, por exemplo, com a aprovação da 10639/03.

A luta pela educação é secular na história da população negra de nosso território. Antes mesmo de os negros se organizarem em movimentos negros. Voltarei a discutir essa luta em outro momento. Também é equívoco achar que as ações afirmativas são cópias dos EUA, não são e ao conhecer minimamente as lutas negras de nosso país esse argumento se desfaz.

Por hora, mas não por último que muita água vai rolar por aqui nesta discussão, temos uma dívida histórica sem tamanho com a população negra brasileira. Mas eu não acho que as ações afirmativas, o sistema de cotas, o Estatuto da Igualdade racial e afins devem ser entendidos como parte desta fatura.

Os contrários às cotas insistem que a abolição já se deu há 120 anos e que eles não foram escravistas. De fato é verdade, nem os negros da atualidade viveram o sistema que é a instituição mais duradoura de nossa história pós-cabralina: a escravidão como sistema legal. Mas não é isso que está em jogo. O que está em jogo é qual presente e qual futuro desejamos hoje.

Considerando que presente e futuro queremos ajudar a construir, tenho questões a propor a todos aqueles que sinceramente desejam refletir sobre a desigualdade no Brasil. Pois de fato, não pretendo convencer gente do grupo social do jurista Gandra Martins, nem os leitores de Veja, porque compreendo a posição deles e a defesa dos interesses dos grupos que representam. Meus interlocutores são outros e é deles que quero saber:

Desejaremos manter esse fosso incomensurável de desigualdades não apenas sociais, mas também étnico-racial?
Pois a pobreza e a morte neste país tem uma cor bem determinada. Falo da cor que empretece as estatísticas de exclusão social, quando vistas com a lupa do critério raça-cor-etnia (e por favor, não me venham com a cantilena de que não existem raças, todas as pessoas esclarecidas sabem disso, mas o racismo a inventou e enquanto ele existir, entendamos raça como uma categoria sociológica). Falo dos índices de IDH que melhoram no Brasil, menos para a população negra, como pode ser visto nas análises do economista Marcelo Paixão; da taxa de mortalidade da juventude negra brasileira; das mortes de mulheres negras (em sua maioria) provocadas em clínicas de aborto clandestinas, dos menores índices de escolaridade, evasão e retorno insistente de crianças e adolescentes negros que querem exercer o direito de estudar; das diferenças salariais para o mesmo tipo de trabalho desenvolvido etc.

Questiono aqueles que ainda são contrários às cotas: desejaremos perder a chance de enriquecer nossas universidades com as diferenças de perspectivas, pontos de vista, outros modos de pensar, agir e produzir?

Questiono-os: Desejaremos manter uma sociedade de estrutura colonial e escravagista em todos os espaços públicos e privados onde o simples fato de alguém ter um fenótipo não branco é sinal de suspeição?

Para mim, a aprovação do Estatuto de igualdade racial em 2008 será de fato fazer valer os 120 anos de Abolição e os próximos 100 anos da sociedade brasileira que queremos construir.
Abraços a todos
Conceição Oliveira