Precisamos falar da Cultura do estupro para além dos casos explorados pela mídia

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O relato de que 33 homens estupraram uma adolescente de 16 anos na zona Oeste do Rio de Janeiro no último sábado e postaram imagens da vítima nas redes sociais na última quarta-feira mobilizou o país. Até mesmo grupos anti-feministas fizeram memes contra o estupro para espalhar na rede.

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O meme no qual o MBL, movimento machista que tantos ataques misóginos fizeram à mulher Dilma Roussef, buscou surfar na rede com o sucesso da campanha do coletivo feminista que reúne mulheres de todo o país, famosas e anônimas e criaram a tag #estupronuncamais que ganhou as redes sociais, a mídia nacional e internacional.

O mesmo MBL que sustenta o governo provisório, sem um negro ou uma mulher no ministério, ignorando todas as denúncias, áudios vazados que mostraram todo o movimento de corruptos investigados da lava jato para derrubar a presidenta legitimamente eleita. 

Eleitores de Bolsonaro surfaram na onda da tag e lembraram de seu projeto de castração química, mas se esqueceram de que o mesmo deputado é um dos maiores difusores da Cultura do Estupro. 

Seus eleitores esquecem-se também que Bolsonaro ameaçou Maria do Rosário dizendo que não a estuprava porque ela não merecia nem ser estuprada (como se alguma pessoa merecesse); esqueceram-se que na votação da admissibilidade do impeachment Bolsonaro homenageou um torturador que adotava como práticas de tortura o estupro, fez ainda uma agressão violenta à presidenta insinuando que ela sentia saudades de seu estuprador, Brilhante Ustra.

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Eleitores de Bolsonaro não disseram uma única linha sobre o fato de Alexandre Frota que publicou em sua rede que foi convidado por Bolsonaro para compor chapa como vice na disputa de eleições presidenciais. Frota protagonizou no ano passado uma das cenas mais grotescas da televisão brasileira: ao narrar um estupro de uma mãe de santo, que desmaiou tamanha a violência usada sob aplausos da plateia.

Voltando à jovem cuja notícia do estupro chocou o país. Há algumas fotos e vídeos de seu corpo nu, um dos rapazes envolvidos fazendo selfie e o relato da garota que disse que ao acordar haviam 33 homens armados ao seu redor. Há relatos em grupos de whats não confirmados pelas investigações policiais de que parcela desses rapazes já foram sentenciados. culturadoestupro5

Passado o clamor social deste caso, continuaremos a ignorar os dados astronômicos da violência contra a mulher no Brasil? Continuaremos a não ver nenhuma relação entre as práticas de políticos reacionários, seus discursos violentos como fomentadores deste quadro? Continuaremos a ignorar e a endossar o fundamentalismo da bancada do boi, bala e bíblia que querem silenciar a discussão sobre a questão de gênero nas escolas, aprovar o estatuto do nascituro que obriga a vítima do estupro caso engravide a não interromper a gravidez? Continuaremos a bater palma para o PL 5069 de Cunha que dificulta sobremaneira o atendimento à vítima de abuso sexual? culturadoestupro6

No Brasil, dados de 2014 mostram que a cada 11 minutos uma mulher é estuprada! Só em São Paulo de 2005 a 2012 houve aumento de 230% dos casos de estupro! Foi o crime que mais cresceu no estado.

Se considerarmos que uma parte expressiva das vítimas ainda tem dificuldades de denunciar o estupro esses índices são ainda maiores.

Quase 25% dos casos de estupro são cometidos por pais e padastros das vítimas e uma parte expressiva por pessoas do círculo familiar/vizinhos/amigos das vítimas.

Por isso, precisamos falar da CULTURA do ESTUPRO que está entranhada em nossa sociedade e precisa ser combatida com educação e ações concretas.

Por isso precisamos ficar atentos à cobertura da mídia desses casos chocantes que tendem a tratar os agressores como monstros isolados, a endossar discursos favoráveis à pena de morte e outras medidas populistas que não refletem na diminuição da violência contra a mulher.

Precisamos refletir sobre o que permite os estupros coletivos ou ações misóginas espalhadas pelas redes sociais que pregam, por exemplo, estupros corretivos em feministas, em lésbicas e homossexuais. É a cultura do estupro que permite que Bolsonaro ameace uma deputada e violente a mulher Dilma em plena votação no Congresso ou que Frota narre e teatralize um estupro sob aplausos da plateia, ou ainda que o mesmo Frota seja recebido pelo ministro da educação do governo provisório de Temer como alguém com contribuições a dar à educação pública. É a cultura do estupro; é a naturalização de todas as violências, físicas, simbólicas e psicológicas contra as mulheres que permite que a mulher seja violentada todos os dias.

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É a cultura do estupro que permite que outros homens e, por vezes mulheres, não sintam a menor empatia com as vítimas e ainda as responsabilize pelas agressões:

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Combater o crime do estupro passa também por lutar por estruturas adequadas no Estado Brasileiro que possa investigar os crimes, julgá-los e punir os culpados. Acabar com a Secretaria da Mulher e Direitos Humanos como fez o governo provisório de Temer não é um bom caminho.

Como nos explica a advogada Xênia Mello, no Direito, o estupro é um crime material:

"Isso quer dizer em poucas palavras que além dos depoimentos da vítima é preciso encontrar vestígios de materialidade do crime. Exemplo roupas rasgadas, sêmen no corpo da vitima, corpo delito, enfim, várias provas materiais. Uma das razões de haver uma impunidade tão grande é a ausência de estrutura do Estado. No Paraná, por exemplo, existem apenas 4 peritos que atendem todo o Estado para fins de realizar teste de comparação genética entre agressor e vítima. Quatro peritos para todo estado que são responsáveis por investigar todos os crimes que envolvam prova genética (cabem aí os crimes de homicídio, reconhecimento de corpos em putrefação, carbonizados). É impossível dar uma resposta efetiva com uma equipe tão reduzida. Sem falar da estrutura precária das delegacias. Soma-se a isso a tortura praticada de forma sistemática nas delegacias. O caso da menina Tainá em que os possíveis estupradores foram torturados para assumir a autoria do crime, antes mesmo de Tainá ser morta. O caso não foi resolvido até hoje, nem punido os torturadores. Nem o caso da menina Raquel. Bom, o que eu quero dizer com tudo isso. Que a gente precisa lutar por mais concursos para a estrutura de atendimento e acolhimento de denúncia. São pouquíssimas delegadas, são pouquíssimos investigadores, peritos e técnicos. Isso precariza tanto as investigação quanto a dignidade do trabalho desses agentes. Parte da hostilidade dos agentes é resultado também da péssima condição de trabalho. Acho que vocês deveriam conhecer os IMLs e delegacias pra ver o que estou falando. E combater a tortura. É tanta coisa junta! Tanto trabalho. Precisamos avançar. Só haverá real enfrentamento à violência contra a mulher se começarmos a lutar por orçamento próprio para esse fim. Estamos na luta!

A jovem do Rio de Janeiro, vítima de estupro coletivo, pode não conseguir provar a materialmente o crime: segundo seu relato, o crime ocorreu no sábado, mas só na quinta-feira ela foi ao hospital. Essa não é uma atitude incomum. Quem passa por uma violência destas e ainda tão jovem além da vergonha, do pavor, do transtorno emocional diante de tamanha agressão pode até mesmo se responsabilizar pelo ocorrido. De acordo com algumas matérias que circularam na mídia, ontem, a vítima escreveu uma mensagem em seu Facebook agradecendo as pessoas e mostrou-se surpresa com a solidariedade. Ela esperava a condenação social, porque intimamente numa sociedade que convive com a cultura do estupro a vítima, muitas vezes acaba incorporando a culpa.

Somente se decidirmos discutir com seriedade a cultura do estupro e a exigir que ela seja combatida em todas as suas dimensões é que conseguiremos tirar o país das vergonhosas estatísticas ou novamente acordaremos estarrecidos com outro escândalo de crime hediondo que renderá manchetes e chamadas ao vivo e muita publicidade à mídia, enquanto mais mulheres continuarão sendo vitimas de um estupro a cada 11 minutos.

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