Prêmio Anu Preto da CUFA 2011 e o dia que o funk ocupou o seu lugar: o Municipal

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Pereira Passos e o “bota-abaixo”

Na primeira metade do século XX o Rio era capital federal e nossos políticos conservadores não se miravam em Nova Iorque como fazem os de hoje, mas em Paris para desenvolver suas políticas urbanas.

Pereira Passos depois de uma estada em Paris, assumiu a prefeitura do distrito federal e passou o rodo no centro do Rio colonial numa operação conhecida como 'bota- abaixo'.

Como diz o historiador Cláudio Silva sobre esta operação: “ocorreu a destruição de inúmeros cortiços, que eram entendidos como sínteses da insalubridade e da violência, espaço da barbárie. A reorganização do espaço urbano carioca, sob novas orientações econômicas e ideológicas, não condizia com a presença de pobres na área central da cidade. Afastar os pobres da área central da cidade e não permiti-los entrar nas áreas nobres são objetivos de todos os prefeitos até Pereira Passos. A cidade com a reforma define quem deve ou não deve estar na área central.”

Assim, os cortiços do centro foram abaixo e em seus lugares foram abertas grandes avenidas e bulevares, construídos largos e praças e edificados quase de uma só vez na Cinelândia: o Teatro Municipal do Rio de Janeiro; a Biblioteca Nacional; o Museu de Belas Artes; a Câmara dos Vereadores da Cidade do Rio de Janeiro e  o Cluve Naval. São belíssimos e foram durante muito tempo para usufruto de poucos.

Teatro Municipal recém-inaugurado entre 1905-1909.

Os negros e pobres (são parecidos como diria Mv Bill, mas não são iguais) foram expulsos do centro do Rio de Janeiro e começaram a ocupar os morros. Nasciam as primeiras favelas. Mv Bill em uma das apresentações durante a cerimônia do Prêmio Anu 2011.

Por isso não deixa de ser irônico o discurso de que hoje, o Estado, por meio da força policial e do exército, tenha de ocupar os morros...  Um século de invisibilidade e governos sucessivos não se preocuparam com a massa sem acesso a bens e políticas públicas nos morros cariocas (e em todas as favelas do Brasil) a não ser, como no caso do Rio, quando preto descia para o asfalto e se não fosse pra trabalhar nas casas das madames danuzas, o pau comia....

O Premio Anu e a subversão da lógica excludente da invisibilidade

O teatro municipal foi recém restaurado e recém-inaugurado em maio do ano passado com toda pompa e circunstância com a presença de Lula (um ex-operário sentou em seu camarote principal). Tudo original até as descargas dos banheiros. É neoclássico, art nouveau, estilo bolo de noiva como toda arquitetura européia de fins do XIX e início do XX. Segue imponente com seus cristais bacará e pinturas de ouro, mas precisou do Prêmio Anu Preto, que aconteceu em suas dependências, na segunda-feira dia 07 de fevereiro, para dar um nó na lógica Pereira Passos que sobrevive mais de um século depois.

Ao lado da mãe e de sua esposa - Ana Petta, Orlando Silva bastante emocionado foi a personalidade homenageada da noite. Nascido na periferia de Salvador, sua trajetória política no movimento estudantil e a superação de tantas dificuldades impostas pela sociedade racista, violenta e excludente  segue como exemplo para  jovens negros e brancos brasileiros.

Além de políticos importantes como Alexandre Padilha, ex-ministro das Relações Institucionais do governo Lula e atual Ministro da Saúde, da deputada Federal Manuela D'Avila, PCdoB, o homenageado da noite, o Ministro dos Esportes - Orlando Silva - atrizes, atores, jornalistas e apresentadores globais como Luciano Huck, Regina Casé, La Peña, Lázaro Ramos, Juliana Alves, Edson Celulari, Fernanda Torres, Míriam Leitão e cantores como Alcione, Sandra de Sá (que roubou a festa e levou o público ao delírio), Mv Bill, Fernanda Abreu, Dudu Nobre, o teatro foi literalmente ocupado pelos morros e favelas de todo o Brasil, do litoral ao interior, com a presença das verdadeiras estrelas da festa: os premiados.

Por várias vezes foi emocionante ouvir estes sujeitos invisíveis que a CUFA, Central Única de Favelas, realizadora do Prêmio Anu, trouxe até nós. Do sertão baiano veio a representante do projeto que ajuda os sertanejos a se apropriarem da tecnologia de construção de cisternas de água potável que leva vida aos sertanejos.

Aprendemos com os Yanomami que a escola é o xapono e que os povos indígenas têm direito de aprender suas culturas e dominar a língua oficial, a língua portuguesa das leis, para entendê-las e intervir em sua aprovação como cidadãos brasileiros que também são.

Descobrimos que lugar de criança é na escola e nos espaços de brincadeira e não no trabalho duro como nos ensinam  as comunidades de Goiânia. Descobrimos também que a cultura afro-brasileira é bela, deve ser valorizada, vivida e apropriada pelos seus agentes como fazem os maranhenses do Sonho dos Eres.

Representante do projeto vencedor do Maranhão: Sonho dos Eres, Premio Anu Preto, 2011.

Aprendemos que as pessoas fazem parte da natureza e com manejo sustentável pode se ter água no sertão paraibano, assim como as mulheres do Paraná que com óleo de cozinha que poluiria o solo e água fazem material de limpeza caseiros.

A vencedora do projeto do Paraná, uma das senhoras que fazem sabão caseiro, posa ao lado de Hélio la Peña e Miriam Leitão, Premio Anu Preto, 2011.

A representante das mães de portadores de necessidades especiais de Roraima, muitas das quais abaixo da linha da pobreza e muitas vezes abandonadas pelos pais de seus filhos nos fizeram chorar. A força daquela mulher que segue plantando nas hortas comunitárias do projeto Associação Comunitária Mães Anjos da Luz nos comove, nos impulsiona a se indignar diante do abandono tanto de seus ex-companheiros como das políticas públicas que ainda não conseguem atender a todas as pessoas não portadoras de necessidades especiais, imaginem àquelas que necessitam a vida inteira de cuidados especiais.

Uma das mães do Anjos da Luz,  projeto vencedor de Roraima, fez um discurso emocionado que comoveu a todos. Ao lado, o vencedor do projeto do Rio Grande do Sul; a atriz e apresentadora Regina Casé e Renê Silva, adolescente do Complexo do Alemão que criou o Jornal Voz da Comunidade.

Vinte e sete representantes dos 26 estados brasileiros e também do Distrito Federal subiram ao palco e receberam o Anu Dourado e mais uma vez a CUFA subverteu a lógica racista e excludente e, infelizmente, ainda presente na sociedade brasileira de história escravocrata. O pássaro anu preto, no passado, por sua cor, era associado ao mau agouro, ao cativo, ao excluído numa sociedade em que prevalecia o domínio senhorial e na noite de segunda-feira (dia de preto e favelado) tornou-se objeto de desejo, o prêmio mais especial da noite. Vencedores do Anu Preto os projetos da Bahia e do Rio de Janeiro.

CUFA uma década de revolução sem armas nas periferias brasileiras

Durante o coquetel, quando pude conversar um pouquinho com Preto Zezé, novo presidente da CUFA (Central Única de Favelas), falei da minha grande admiração pela instituição e sobre a imensa capacidade de articulação política dela.

Disse-lhe: "só mesmo a CUFA para juntar no mesmo espaço eu, Beto Mafra e Índio da Costa". Ele riu porque sabia exatamente o significado de minha observação.

Não, não. Não tem a foto do nosso encontro com Índio da Costa. Acima, Preto Zezé, eu, Celso Athayde e Beto Mafra: "invisíveis teimosos" que recusaram este papel.

A CUFA é um misto de Al-Qaeda sem bombas, de MST sem ao facão, de PCC sem o crime. Mas a CUFA é explosiva: implode a lógica da exclusão, leva auto-estima com som de 'preto e favelado' para espaços nobres, a CUFA faz o municipal dançar funk!

O público do teatro municipal foi ao delírio com o espetáculo dos funkeiros. Prêmio Anu, 2011. Os meninos do funk bem à vontade no Teatro Municipal. Como bem lembrou Lázaro Ramos: lugar de preto é o lugar que sonhamos.

A CUFA conversa de igual para igual com qualquer autoridade institucional porque suas imensas células espalhadas em todo o território nacional e em mais 12 países vem mudando paradigmas, invertendo a lógica de Pereira Passos, mostrando que não é possível aceitarmos passivamente o racismo como motor da produção da pobreza, que os marginalizados socialmente não são produtos da natureza, são fruto de políticas excludentes e que para romper com a política policial de repressão é preciso diálogo, cobrança, negociação, é preciso mudar a forma de pensar de todos.

Não é a toa que o Cara ontem, em Dakar, no Fórum Social Mundial, exibiu orgulhosamente a camiseta da CUFA. Faz tempo que Lula entendeu o recado que vem dos morros e favelas do Brasil.

A CUFA está disposta a dividir o que aprendeu com todos aqueles dispostos a abraçar a idéia de que um país democrático só se faz quando não existe cidadãos de primeira, segunda e terceira classe.

A CUFA vem ressignificando o Brasil. Descanse em paz Pereira Passos, o Municipal é nosso, do povo brasileiro. O Brasil é do povo brasileiro e é por isso que lugar de preto, de branco, de amarelo, de tudo junto e misturado é no Municipal.

PS. Quanto a esta blogueira suja que vos fala, fui na estica, busquei honrar o convite especial que recebi do grande organizador desta festa maravilhosa, Celso Athayde.

Já ganhei dois prêmios Jabuti que ocorrem em espaços suntuosos na capital paulista e posso garantir a vocês, com todo o luxo e importância do Jabuti, o prêmio Anu fez bonito, em beleza, luxo, calor humano, celebridades e, principalmente, em dar visibilidade aos protagonistas que com seu trabalho fazem a diferença neste país. Valeu, Celso! Tamo juntos e misturados.

A cantora Sandra de Sá que incendiou o Municipal durante cerimônia do Prêmio Anu. Somos todos sarará, crioulo! Mv Bill e Nega Gizza e o Anu Preto tão cobiçado. Dudu Nobre, banda e o painel representando favelas cariocas, Prêmio Anu, 2011.

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