Quando Zé Dirceus, Nunes, Aldos e meu amigo falam a mesma língua

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Estava procurando um motivo importante pra trazer a entrevista que Zé Dirceu deu ao Roda Viva.

Em todos os blogs que a reproduziram,  independente da coloração ideológica do blogueiro, foi opinião unânime a crítica feita à bancada de entrevistadores, assim como à mediadora. Todos sintetizaram a atuação pífia dos entrevistadores como: 'medíocre'.

Qualquer telespectador médio que viu o Roda Viva com José Dirceu pôde perceber como os entrevistadores não se preparam nadica de nada pra fazer as perguntas, nem mesmo Paulo Moreira Leite, um grande jornalista. Uma pena. Esta entrevista mostra que a baba raivosa não serve para desmarcarar ninguém. Ela só fez Zé Dirceu crescer diante dos olhos do telespectador.

Os bons professores de jornalismo deveriam pegá-la como 'case' para estudo em suas aulas, para ensinar como não basta ser 'perguntador', é preciso ter o mínimo preparo para se fazer bom jornalismo e como até bons jornalistas devem estudar antes de entrevistar pessoas inteligentes pra não passar o vexame que a turma do Roda Viva passou com o Zé Dirceu.

Vejam com os próprios olhos a entrevista antes de falarmos sobre a mistura perfeita entre água e óleo quando a questão é discutir e oferecer propostas concretas para combater o racismo no Brasil.

Para mim, à exceção de um comentário bastante infeliz que o igualou ao Nunes, José Dirceu se saiu muito bem na entrevista. Mas antes de falar de seu comentário infeliz, deixem-me contar uma breve história.

Eu tenho um grande amigo, querido mesmo, que admiro muito e acho que a nossa amizade só sobrevive porque a admiração é recíproca e a gente tenta, para além das diferenças que cada vez nos separa, buscar ver aquilo que o outro tem de essencial e admirável. Eu achava que após as eleições nossa relação melhoraria, mas isso ainda não ocorreu, continuamos a discutir duramente. Mas, mesmo com muitos atritos a gente está conseguindo sobreviver. Ou melhor, conseguimos ainda discutir, ouvir o outro e argumentar. É um bom sinal.

Este meu amigo odeia o Zé Dirceu. É um ódio quase patológico. Meu amigo era petista, continua amando a Erundina, mas não gosta da Marta, nem votou na Dilma. É curioso, quando vemos o processo de Paulo Nogueira, um tucano que optou por Dilma, porque entendeu que vivíamos de fato um momento crítico e, ao mesmo tempo, considerarmos os argumentos usados pelo meu amigo ex-petista para ter votado nulo nestas eleições. Qualquer argumento lógico que eu usava para dialogar com ele, a resposta era: E Zé Dirceu? E Genoíno?

Não é que meu amigo não reconheça os avanços do governo Lula, nem tampouco que não saiba as diferenças abissais entre as histórias, as pessoas - Dilma e Serra - e os projetos políticos defendidos por cada uma delas. O que se passa com as decisões políticas de meu amigo é algo que foge às explicações racionais mais simples, tem a ver com o ódio e desprezo que ele desenvolveu por figuras como Zé Dirceu e o outro Zé, o Genoíno pós-mensalão (que eu duvido que ele consiga entender em seu aspecto mais concreto e corriqueiro). Aliás, façam o teste com qualquer eleitor: todo mundo sente ojeriza da palavra 'mensalão' como se o caixa 2 de todos os partidos não fosse muito mais antigo que o do PT e como se  a prática não continuasse de diferentes formas - o pedágio de São Paulo taí para não me deixar mentir. Mas enfim, este ódio por figuras como os Zés (Dirceu e Genoíno) que meu amigo sente,  ele estende a todo o PT e a todos os candidatos do PT, a tudo que o PT representa, mesmo que ele reconheça os avanços do governo Lula e as diferenças entre o projeto neoliberal tucano.

Quando vi o Zé Dirceu no Roda Viva sem nem sequer saber o conteúdo do parecer do CNE, comprando o que Guilherme Fiuza lhe vendeu como 'censura', aproximando-se assim das afirmações mais raivosas da direita no estilo Nunes, Mainardi, Magnoli e tio Rei;  depois quando vi os textos de Aldo Rebelo relativizando preconceitos que não podem ser relativizados (discutidos aqui e aqui) e fazendo malabarismos explicativos da história para comprovar sua tese e, finalmente, quando vi o meu amigo também achando que o parecer do CNE é equivocado, lembrei-me da fala de Sueli Carneiro proferida há quase uma década na Caros Amigos. Cito-a, via outra educadora porreta, ativista para a educação da igualdade étnico-racial:

Sueli Carneiro, em 2001 na revista “Caros Amigos”, e este tem a ver com o momento que o Brasil vive, Sueli falou que, "entre direita e esquerda, eu sou preta". Isso tem a ver, por exemplo, com os processos eleitorais no Brasil neste momento, onde cidades como Salvador, na hora da política, entre direita e esquerda nenhuma candidatura negra vinga, nenhum investimento nas candidaturas das mulheres negras para serem vereadoras. Entre direita e esquerda, nós tivemos que nos sentar para escrever o documento sobre políticas públicas para inclusão e promoção da igualdade racial para o povo negro da cidade de Salvador, a muitas mãos, a 27 mãos, Vanda Sá Barreto, Luíza Bairros, Samuel Vida e tantas outras pessoas que escreveram o documento que tem a ver com a pergunta de como uma criança cresce no Brasil. Aqui uma criança branca cresce sabendo que ela pode chamar uma mulher negra de 50 anos: “hei! venha cá, limpe aqui para mim”, não tem um sentido de respeito." (Vilma Reis: Quebrando Naturalizações)

Eu diria que, no Brasil, crianças brancas (especialmente as das classes médias mais abastadas), crescem como Emílias. Elas acham que todas as mulheres negras que trabalham em suas casas são tia Nastácias... Não estão de todas erradas na medida em que as relações da Casa Grande & Senzala são continuamente reforçadas em diferentes espaços sociais, mas especialmente no espaço doméstico.

Nesta falsa polêmica que quer, mesmo a fórceps, vender o parecer do CNE como 'censura' a Lobato, chama-me a atenção também a fala de Marisa Lajolo, uma estudiosa de Monteiro Lobato que sabe mais do que ninguém que o autor é racista. Marisa fez uma crítica no mínimo desrespeitosa ao parecer assinado por Lina Gomes, extensiva ao CNE e ao MEC. Aliás o título que ela deu ao seu artigo discordando do parecer do CNE é: 'Quem paga a música escolhe a dança'.

A leitora Sueli Fonseca Rocha, nesse comentário, propõe a nós um excelente exercício de empatia: e se Monteiro Lobato além da eugenista tupiniquim (que achava que tudo que fosse da cultura popular, leia-se tudo que fosse majoritariamente oriundo da cultura negra nas décadas de 1920/1930 não prestava, era ignorante, não era 'moderno e civilizado') fosse um ótimo escritor nazista? E se Tia Nastácia ao invés de preta fosse judia?

Sueli Rocha argumenta acertadamente que a população negra é maioria no Brasil e nos lembra que os pais negros (como ela) são cidadãos e também pagam seus impostos. Após ler seu comentário fiquei pensando o que Marisa responderia para essa leitora atenta do Maria Frô: se os negros são a maioria da população e também pagam impostos, por que não podem escolher a melodia?

Para encerrar, volto ao título que dei a este post. Quando Zé Dirceu do PT, Augusto Nunes da Veja (no Roda Viva foi o Fiuza que lembrou primeiramente do causo do CNE, adiantando-se ao Nunes), Aldo Rebelo do PCdoB e meu amigo que vota nulo têm a mesma opinião sobre o parecer do CNE, a frase de outra Sueli, a Carneiro, citada por Vilma Reis, faz todo sentido.

No Brasil, quando se trata de enfrentar o racismo a unha, de frente, sem delongas, quando se trata de desenvolver propostas concretas para atuar visando seu fim, esquerda e direita se esquivam, seus discursos se aproximam. Isso é o que faz, uma mulher negra combativa como Sueli Carneiro afirmar com toda a força e razão: "Entre direita e esquerda, sou preta". Eu também.