Rânia, rainha da Jordânia: "1.000 dias de bloqueio ilegal que destrói Gaza"

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Sua Majestade, Rânia, rainha da Jordânia, faz um balanço do bloqueio criminoso que o Estado de Israel impõe a Gaza. O artigo foi publicado no Independent e a tradução é de Caia Fittipaldi.

Romper o bloqueio da mentalidade e das políticas de violência, de Israel

SMR Rainha Rania da Jordânia, The Independent, UK

7/6/2010

O que têm em comum chocolate, biscoitos, papel A4, batatas fritas, brinquedos, geleia, nozes, frutas secas e bodes? É difícil adivinhar. Se você for moderado, nada há de comum entre esses itens. Mas se você for político israelense extremista, essa é uma lista de produtos potencialmente perigosos, que podem ameaçar a segurança de Israel. Parece que essa linha mais dura do espectro ganhou a disputa, porque é expressamente proibida a entrada desses itens, em Gaza.

Entende-se. Quero dizer, podem-se causar ferimentos graves no inimigo, com um biscoito de chocolate. E recortar papel, então, ah, é muito perigoso!

Não quero superdramatizar a situação, porque nem tudo é desgraça em Gaza. Encontram-se lá vários itens úteis à vida: esfregões, esponjas para lavar pratos, cartelas de ovos, produtos para limpar vidro, pentes, gaiolas plásticas para galinhas e lentilhas, por exemplo. Assim sendo, por quê, exatamente, o 1,5 milhão de pessoas que vivem em Gaza reclamam? O que poderia haver nos barcos da Flotilha da Liberdade, que os fuzileiros navais israelenses atacaram na madrugada de 2ª-feira, em águas internacionais, em mais um ataque que horrorizou nossa comunidade humana global?

Segundo todos os relatos, havia na flotilha 10 mil toneladas, não de armas, mas de ajuda humanitária vital. O povo de Gaza necessita desesperadamente sobreviver aos 1.000 dias de bloqueio ilegal que destrói Gaza e a reduziu a prisão a céu aberto. Ajuda humanitária, como cimento para reconstruir casas reduzidas a ruínas, montes de tijolos e pó, depois dos monstruosos ataques a Gaza, ano passado; material escolar; equipamento médico, como tabletes para purificar água e cadeiras de rodas.

O ataque horrorizou o mundo pelo flagrante e absurdo desrespeito a qualquer lei internacional, aos direitos humanos e às normas diplomáticas. O ataque horrorizou o mundo, mas não me surpreendeu. E não pode ser analisado como evento isolado. É mais uma eclosão de um dogma que fermenta há muito tempo, na paisagem política de Israel.

É doutrina que vive de si mesma e para si mesma, indiferente aos outros. Sobrevive porque está implantada no plano cognitivo e subliminal. Está implantada na consciência do público, mediante a repetição de um conjunto de princípios, segundo os quais a própria existência de Israel é eternamente ameaçada, e tem de ser defendida por quaisquer meios (preferentemente pela força, para que o inimigo aprenda quem é o patrão). Para tanto, implantou-se em Israel uma mentalidade de “nós contra o mundo”. Por sua própria natureza, essa ideologia de violência se autorreforça pela repetição e perpetua-se, ela mesma. O objetivo dessa doutrina é sobreviver – e essa meta condiciona todas as demais. Se, para existir, essa doutrina tem de redefinir o que é aceitável, retraçar as linhas da lei internacional, reimagi nar armas mais adequadas –, que assim seja. Atribuindo-se a eles mesmos plena autoridade e total imunidade, os líderes israelenses sentem-se autorizados a fazer o que bem entendam, e não esperam que o mundo os aceite.

Mas essa via de pensamento e ação dura e extremista é minada de perigos para todos nós. Essas políticas radicais degradam os valores dos israelenses, e todos os valores humanos. As medidas mais radicais tornam-se palatáveis. Infligir violência a uma maioria inocente, para punir uns poucos culpados passa a parecer possível, logo, necessário. Cada dia a mais que dure o bloqueio de Gaza, é mais um dia em que toda nossa humanidade permanece sitiada.

O efeito é haver na Palestina um povo preso num beco sem saída, entre a montanha e uma política dura. O resultado é o desespero; a resposta, políticas cada vez mais duras e extremistas, pensadas para salvar as políticas duras e extremistas de antes. Afinal: o obsceno ataque à flotilha de pacifistas aconteceu para proteger a segurança de Israel, ou para reafirmar o próprio sítio de Gaza?

Mais frustrante ainda é ver Israel defender suas ações. Ao atacar todos os que criticam os atos de Israel, como se todos fossem parte de alguma campanha anti-Israel, ou de guerra de propaganda antissemita, Israel demonstra, mais uma vez, que não entende que o principal problema são as próprias políticas israelenses, problema que não se resolve com ações de propaganda. Agora, como sempre, a política israelense de violência e os que a defendam são veículo para forças cada vez mais obscurantistas que, ao mesmo tempo, canibalizam e incendeiam a própria Israel. Nenhum bem pode advir daquelas políticas. São políticas insustentáveis, porque veem algum direito em negar direitos humanos fundamentais.

Exceto todos os que defendam políticas de violência dos dois lados, e que hoje se veem fortalecidos para embarcar em mais fanatismo, todo o resto da humanidade perde, por causa das políticas israelenses.

Perde o povo de Gaza: 80% dos gazenses vivem abaixo da linha de pobreza. Perdem as crianças de Gaza, onde 1/3 das escolas foram destruídas no final do ano passado, e jamais reconstruídas até agora. Perdem os recém-nascidos de Gaza: 95% da água disponível para uso humano em Gaza não atende as recomendações da OMS, o que expõe milhares de bebês ao risco de envenenamento por nitrato.

Perde o povo de Israel, cidadãos de um Estado rejeitado hoje por 1/3 das nações representadas na ONU e pela maioria da comunidade global; o cidadão israelense comum descobre-se hoje persona non grata fora das ‘fronteiras’ de Israel. Viver na defensiva não é viver. Os seres humanos precisam de bases seguras para sobreviver e prosperar. O governo de Israel estará realmente preparado para as consequências de condenar os próprios israelenses a viver sobre as frágeis bases de um Estado governado pelo medo? Estará preparado para as consequências que advirão dessa condenação?

As lideranças políticas de Israel têm de fazer-se algumas perguntas muito difíceis. “Estamos mesmo comprometidos para sempre, numa estratégia de governar pelo terror? O futuro que o governo de Israel espera dar aos israelenses é uma situação perene de autodefesa? Desejamos para os israelenses, esses horizontes sem qualquer esperança?”

E perdem também, em todo o mundo, todos os moderados. Pessoas que, como eu, atreveram-se a confiar que o caminho que leva à paz não seja caminho desolado e solitário. Que se atrevem a confiar em que a Solução dos Dois Estados não é produto de imaginação de idealistas. E todos os que assumem a responsabilidade ética de enfrentar os dados e a ciência da realidade, para formar uma coalizão de humanos que questionam e confrontam as ideias e pressupostos da extrema-direita, em todo o mundo, para reafirmar o ethos da moderação. Afinal, viver é viver moderadamente, praticamente em todos os aspectos do viver.

Falando como moderada, temo que, se a maré não virar em nossa Região, a moderação estará entre as mais dolorosas mortes que todos lamentaremos, em quadro de políticas cada vez mais duras e extremistas e repetidas agressões.

Acompanhei a luta do falecido rei Hussein, em nome da paz, até seu último alento de vida. Hoje vejo seu filho, meu marido, rei Abdullah, que continua a mesma luta. E parte-me o coração ver que todos, nessa Região, ainda caminhamos, todos os dias, cada vez para mais longe da paz.

Morre a paz. Morrem pessoas. Morre a moderação. Parece-me que é preço alto demais a pagar, para manter políticas duras, de violência e extremismo sempre crescentes.

É verdade que as bem-vindas flotilhas da paz vieram para trazer socorro ao povo de Gaza. Mas também é verdade e tão importante quanto o socorro: vieram, também, para tentar romper o bloqueio da mentalidade e das políticas de violência, de Israel.