"Se o critério de raça foi usado para se construir hierarquia deve ser usado para desconstruí-la."

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Ontem escrevi no Facebook: 'Tô emocionada, chorando feito criança, hoje e ontem vivemos tempos impressionantes, começamos a deixar o século XIX para trás, O STF com a sensibilidade de Ayres Britto, de Ricardo Lewandowski, Luiz Fux não apenas defenderam com maestria a constitucionalidade das cotas, eles deram aulas de cidadania, suas arguições deveriam ser lidas em todas as escolas, todas as universidades até que nós cidadãos brasileiros aprendêssemos que uma sociedade democrática não pode ser construída baseada na exclusão. Viva! #CotasSim"

E vários amigos queridos de luta foram comentar no post e celebrar esta vitória que embora tardia e tão rara, foi arrasadora.

Lembrei de pelo menos dez anos de debates intensos em prol das cotas, quando ainda éramos muito poucos e solitários (mas sempre solidários) nos esparsos blogs, nas comunidades do orkut e, principalmente, nas listas de mails.

Lembrei dos amigos com quem debati duramente em defesa das cotas até convencê-los que estavam equivocados em se opor a elas. Dois deles pelo menos viraram defensores das ações afirmativas e estudiosos do tema.

Lembrei da lista Mulheres Negras onde conheci muitas companheiras de luta que até hoje fazem parte da minha vida e formação como Fátima Oliveira e chorei emocionada e até agora os olhos lacrimejam ao lembrar de cada frase proferida por Fux, Britto, Duprat, Lewandowsky, frases que tantas vezes proferimos pra desconstruir os sofismas perversos que como todo sofisma vendia a ideia de proteção quando servia pra excluir. Vencemos o bom combate.

Ah! E terá pessoas que se surpreenderão mais uma vez por eu destacar um texto de Míriam Leitão no blog. Faço com prazer, Míriam Leitão em relação ao combate do racismo e à defesa de ações afirmativas sempre esteve do lado de cá, sempre praticou o bom combate e merece todo respeito e consideração. Apreciem seu belo e emocionado texto em parceria com Álvaro Gabriel.

O bom combate

Por Míriam Leitão e Álvaro Gabriel, O Globo

Ao longo do belo voto do ministro Ricardo Lewandowsky, ontem, a favor das cotas raciais nas universidades brasileiras, foram sendo desmontados, um a um, os argumentos que nos últimos dez anos tanto espaço tiveram na imprensa brasileira. O ministro mostrou que o princípio da igualdade evoluiu do simplesmente declaratório para a fase em que se trabalha para a construção de um país menos desigual.

Joaquim Nabuco, um dos fundadores da pátria brasileira - já citado aqui nesta mesma coluna, neste mesmo tema - disse em frase insuperável: "Não basta acabar com a escravidão, é preciso destruir sua obra." No voto do ministro Lewandowski o que se vislumbra é a possibilidade de dar mais um passo na destruição do resquício desse passado que temos carregado como bola de ferro atada aos pés da Nação.

O julgamento foi suspenso ao fim da apresentação do voto do relator e só hoje será retomado. É aguardar o amanhã. Foi um longo caminho até aqui. Foram mais de dez anos de intensos debates e inúmeras experiências de ação afirmativa pelo país. Os argumentos se enfrentaram intensamente. Nem sempre com a honestidade intelectual exigida por questão desse porte. Houve manifestos contra e a favor.

Ontem, o voto do relator foi pela constitucionalidade da política de cotas e do critério racial. Alguns apartes e o elogio do presidente do tribunal, ministro Ayres Brito, definindo o voto como corajoso, vigoroso e consistente, mostram que há chances de que as ações afirmativas tenham a maioria dos votos.

Atualmente, segundo o Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Uerj, são setenta as universidades federais e estaduais nas quais as políticas de ação afirmativa favorecendo negros, índios e pobres foram implementadas, com diferentes métodos. A prática demoliu os temores levantados pelos críticos das cotas: que haveria conflito nas universidades, que haveria queda da qualidade, que os cotistas não teriam bom desempenho, que se quebraria o princípio do mérito.

A realidade provou o contrário. Não houve conflito, a qualidade não caiu, os cotistas tiveram desempenho semelhante aos não cotistas, o princípio do mérito não deixou de existir.

O ministro relator demoliu outros sofismas. Houve quem dissesse que não se poderia adotar cotas raciais porque não há raças. De fato, não há, mas a sua inexistência não impediu que houvesse racismo. "Se o critério de raça foi usado para se construir hierarquia deve ser usado para desconstruí-la." O temor de que a política quebrasse o princípio constitucional da igualdade começou a ser enfrentado pela vice-procuradora-geral da República, Débora Duprat, que mostrou que esse princípio evoluiu na Constituição de 1988 com o tratamento diferenciado aos desiguais. "É preciso analisar com o coração aberto por que as ações afirmativas de recorte racial provocam tanto desassossego." A vice-procuradora questionou o mito da democracia racial: "Não precisamos de dados estatísticos, basta um olhar na composição dos cargos do alto escalão do Estado brasileiro ou nas grandes corporações e, na contrapartida, olhar para a população carcerária desse país, e para quem é parado pela polícia nas cidades brasileiras." Ela chamou de "reducionismo inaceitável" a tese de que a redução da desigualdade social resolveria o racismo. Lewandowski completou dizendo que "o modelo constitucional brasileiro contempla a justiça compensatória".

Lewandowski derrubou também - e com a ajuda do aparte do ministro Joaquim Barbosa - a ideia sempre repetida no Brasil de que a Suprema Corte americana julgou as ações afirmativas inconstitucionais. Eles disseram que por duas vezes o que a Suprema Corte fez foi o oposto: garantiu sua constitucionalidade.

O ministro esclareceu que a política não nasceu nos Estados Unidos, mas na Índia, de Mahatma Ghandi, na luta contra o odioso - e ainda presente, ainda que ilegal - sistema de castas no país. Sobre o risco de se quebrar o princípio do mérito que é usado no vestibular, Lewandowski lembrou que "mérito de quem está em desigualdade não pode ser linear". Um sistema de ingresso na universidade pretensamente isonômico pode acabar consolidando as distorções existentes no país e reproduzindo a mesma elite dirigente, disse o ministro.

A Ação Direta de Inconstitucionalidade que questiona o sistema de cotas, e foi considerada improcedente pelo relator, é de autoria do Democratas. O grande defensor da tese do DEM hoje está às voltas com outros problemas, o senador Demóstenes. Ele conquistou muitos admiradores entre os adversários das cotas com argumentos pedestres, como o que culpava os africanos pela escravidão. Na época, eu o chamei de "sem noção". Isso, sabe-se hoje, é dizer o mínimo.

O combate ainda não acabou. Será preciso concluir o julgamento no Supremo para retirar a insegurança jurídica sobre a política que já aumentou a diversidade nas universidades brasileiras. Mesmo se o sistema for aprovado, ainda não será o fim do combate, mas antes um novo início. Há um longo caminho a andar na busca de um país mais plural e mais justo. Mas o voto do ministro Lewandowski ilumina a estrada.

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