Sheherazade: A princesa do conservadorismo brasileiro

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A princesa do conservadorismo brasileiro

Por: Wagner Iglecias, especial para o Maria Frô

05/01/2014

O Brasil mudou muito nesses últimos dez anos. Essa enorme rejeição ao PT e às figuras de Lula e Dilma que se vê em certos segmentos da sociedade não é apenas indignação moral por conta do Mensalão. Até porque por mais anti-petista que uma pessoa possa ser ela não é ingênua o suficiente para imaginar que a corrupção atribuída ao petismo seja exclusividade deste ou daquele partido. O problema são as mudanças que os governos petistas têm promovido na sociedade brasileira: o embaralhamento das posições sociais, a democratização (via mercado) de espaços antes reservados a uns e eternamente excluídos a outros, a agenda de temas caros aos mais conservadores, como Direitos Humanos, p ex. E a reação a isso está ai, na praça, cada vez mais forte.

Aliás, como a praça neste país desde há muito é a mídia (ainda que não só), diversos comunicadores reverberam sentimentos e impressões destas parcelas mais conservadoras da sociedade. Entre eles tem se destacado Rachel Sheherazade, jornalista do SBT. Jovem, com semblante sério e enquadrada nos padrões de beleza vigente, a moça não tem papas na língua quando o negócio é vocalizar o pensamento de um certo Brasil que anda meio incomodado com as mudanças recentes. Rachel fez fama ainda na época da TV Tambaú, da Paraíba, com um vídeo em que criticava duramente o Carnaval. Numa entrevista para explicar as motivações de suas palavras duras contra a maior festa popular do país, disse que sua rua ficava intransitável nos dias de folia, ferindo seu direito individual de ir e vir e seu direito ao silêncio. Dali por diante sua carreira ganhou maior visibilidade e ela segue sua trajetória de pronunciamentos em que defende alguns dos valores mais conservadores de nossa sociedade.

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Nessa semana causou polêmica sua defesa do ato de jovens cariocas que teriam espancado e que prenderam num poste, com uma trava de bicicleta, um jovem negro que estaria praticando furtos na zona sul do Rio de Janeiro. Sheherazade disse que “o contra-ataque aos bandidos é o que chamo de legítima defesa coletiva de uma sociedade sem Estado contra um estado de violência sem limite”.  E terminou sua fala mandando um "adote um bandido" para os defensores dos Direitos Humanos. Qual é o nome, que não barbárie, de uma situação em que acharemos normal que cidadãos saiam pelas ruas fazendo "justiça" com as próprias mãos e a partir de seus próprios critérios? Quando se vê a defesa de atitudes desta natureza se conclui que definitivamente não apenas a invenção do fogo ou da roda, mas também a invenção do Estado, foi um grande salto civilizatório na História da Humanidade. Mas o perigo do retrocesso sempre está presente.

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Houve um tempo em que o SBT recrutava moças do antigo programa Fantasia e as colocava como âncoras de seus telejornais. Elas usavam minisaia e as bancadas nas quais trabalhavam eram de vidro. Mas com Rachel Sheherazade é diferente. Tanto em relação a essas antigas apresentadoras quanto em relação aos tradicionais porta-vozes midiáticos do conservadorismo brasileiro. Se os textos ditos por Rachel hoje fossem ditos por um Alborghetti ou um Gil Gomes no passado, muita gente riria e acharia caricato. Como eram homens, falavam alto e faziam caretas, provavelmente muita gente não os levaria muito a sério. Mas quando uma jornalista de fato bonita, que não usa decotes nem cores extravagantes, e tampouco faz gracejos como seu contemporâneos José Luiz Datena e Marcelo Rezende, diz um texto deste, a coisa é bem mais complexa. Ela, com seu estereótipo de leveza e seriedade, dá muito mais legitimidade ao discurso conservador do que seus antecessores do sexo masculino. Alborghetti, Gil Gomes, Datena e Rezende foram e são imitados por muita gente, seja em tom de galhofa, seja como homenagem. Ninguém imita Rachel Sheherazade.

Houve um tempo não tão distante em que nas festinhas infantis se via rodinhas de homens bebendo animadamente e contando piadas sobre gays, negros, mulheres, portugueses e papagaios. Atualmente isso já não é tão comum. No entanto hoje cabe fortalecer as leis e o Estado, e garantir os Direitos Humanos, pois se hoje qualquer um pode se ver no direito de acorrentar um suposto assaltante negro num poste, amanhã poderá se achar legitimado a chacinar um outro ser humano na rua pelo simples fato deste ser homossexual. Comunicadores não deveriam contribuir para situações desta natureza, seja por meio do incentivo ou pelo seu silêncio. É importante ter noção do alcance de suas palavras e, portanto, do tamanho de sua responsabilidade.

Wagner Iglecias é doutor em Sociologia e professor do Curso de Graduação em Gestão de Políticas Públicas e do Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da USP.