TEIMEM CARAS, TEIMEM! Ou um olhar pessoal sobre Lula, o filho do Brasil

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Ontem, fui ver o filme do ‘Cara’, acompanhada de um querido guri, amigo do twitter, o @flavio_as.  Somos, eu e ele, ‘teimosos’.

Flávio teimou em viver: aos 16 anos venceu um tumor no tronco cerebral e todas as seqüelas advindas da doença, da complicada cirurgia e dos inúmeros meses de reabilitação; venceu a exclusão imposta a um filho de porteiro/zelador, também migrante baiano, a trabalhar em Higienópolis e outros bairros de elite e que, sob ordens, proibia o filho de ter acesso à área de lazer dos prédios de classe-média alta, porque lugar de filho de zelador não é nos parques e piscinas misturado com as crianças de classe média alta. Hoje, ele brilha na PUC, aluno nota 10 do PROUNI no curso de Relações Internacionais e antenadíssimo com os desafios da sociedade brasileira: meio ambiente, recursos energéticos e outros bichos.

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Contrariamente ao que sempre faço, li antes algumas críticas positivas e negativas sobre o filme e acompanhei de longe a conversa fiada na grande mídia. Curioso é que quando o livro homônimo de Denise Paraná, que deu origem à película, foi lançado em 2002 até a Veja disse:  “’Lula, o filho do Brasil’ é um retrato magistral da trajetória política, pessoal e familiar do presidente”. E também Folha, Estadão, New York Times, El País, JB, Correio Brasiliense, Época e toda a grande mídia fizeram elogios rasgados ao livro. O que mudou de lá pra cá? Lula além de eleito foi reeleito, oras! Aí não pode, assim não dá!

O magistral Antonio Candido que apresenta o livro de Denise refere-se ao ‘teimoso’ Lula de Dona Lindu como “o maior dirigente operário que o Brasil já teve” e nas palavras do historiador inglês Eric Hobsbawm: “tamanho é o impacto da eleição de Lula para a presidência da República do Brasil que este é um dos poucos eventos do começo do século XXI que nos dá esperança para o resto deste século.” E de 2002 para cá todos sabemos que dos principais jornais do mundo aos principais líderes mundiais, sem exceção, a importância da liderança e do governo Lula vem sendo exaustivamente reconhecida.

Mas voltemos ao filme. Ele não trata do Lula de hoje, eleito pelo Le Monde e pelo El País como o homem do ano, homem da década e por aí afora, nem dá conta de nos explicar como esta história improvável tornou-se uma história possível. O filme não pretende realizar esta façanha, eu diria que se tentasse estaria fadado ao fracasso.

Nem eu me disponho ao longo destas linhas fazer uma análise estética, não tenho conhecimento e  formação na sétima arte para tal crítica. Posso dizer do que gostei e do que não apreciei. Vamos lá:

Não gostei do ator principal, o novato Rui Ricardo Diaz, melhor, não gostei dos momentos em que ele tenta reproduzir a voz do Lula. Dispensável, ficou caricato. Quando ele não faz isso, tem mais força a personagem que ele representa.

A fotografia não é lá essas coisas. Lula, o filho do Brasil não é nenhum “Lavoura Arcaica’, apesar das belíssimas imagens de pôr-do-sol do sertão. Mas cá para nós, foi acertado não transformar a miséria em beleza estética. A pobreza é feia, os barracos de palafita, as inundações, enchentes, as favelas operárias, a fome são feias, seria desonesto uma fotografia que as glamorizassem.

Adorei o pequeno Lula, o ator mirim Felipe Falanga. Várias passagens deste guri no filme me emocionaram: quando ele sai em defesa da mãe diante do pai violento e diz: --não bate na mãe! E diante de um Aristides bêbado e possesso que pergunta: --Não bate na mãe, por quê?, responde: -- Porque homem não bate em mulher! Ou quando desenha o  túmulo da garota que morreu na travessia do chão de terra batida do sertão de Pernambuco ao ‘sertão’ do Porto de Santos. Nesta cena - que na minha opinião tem um dos melhores diálogos do filme-, o pequeno Lula  conversa com a professora (interpretada por Lucélia Santos) e conta o ocorrido com a simplicidade e encantamento infantil que lida com a dor e a miséria reconstruindo-a em outras bases: -- O que você está desenhando, Lula? -- A garota que vinha com a gente, mas não terminou a viagem. -- Vocês conversaram? -- ‘Só com os olhos’. -- Ela morreu de quê?, insiste a professora. -- Acho que foi de tristeza. -- E o que você queria dizer para ela? --Eu queria ter dito que em São Paulo era mais feliz, mas não deu tempo...

A principal personagem deste filme não é Lula, é dona Lindu que Glória Pires interpreta magistralmente. Dá para sentir a proteção desta mulher guerreira a todos seus filhos saltando da tela: -- Vai lá Lula, vai ver o Zé, prenderam o Zé. Dizem que eles matam, Lula, eles matam!

Seu choro desesperado quando Frei Chico é preso pela ditadura militar (e é torturado) me emocionaram muito mais que a cena que deveria ser dolorida  e de comoção: a da morte de Lourdes (Cleo Pires), a primeira esposa de Lula.

Dona Lindu de Glória Pires emociona sempre. Tudo acertado: seu tom de voz, seus gestos, sua caracterização construída a partir da memória reconstruída por meio das entrevistas que Denise Paraná fez com os filhos desta guerreira.

Eu também sou filha de uma Dona Lindu e por isso chorei na cena em que a professora de Lula vai ao barraco pedir para adotar Lula de papel passado. Chorei porque esta situação também ocorreu com a minha Dona Lindu.

A minha mãe chegou a Santos cerca de 10 anos depois de Dona Lindu e seus sete filhos. Em 1963, ela abandonou o sertão baiano comigo no ventre, atrás do meu suposto pai que nunca conheci. Certa vez eu perguntei a ela: se você fosse contar a sua história como faria?

-- (...) eu começaria falando do medo que sentia do barraco desabar quando chovia muito. Eu me encolhia num canto com você no colo, agarrada ao peito. Eu sentia fome, muita fome e pensava como eu me viraria no dia seguinte para comer e ter forças para dar de mamar a você. Eu não desisti, nunca desisti e talvez por isso, hoje posso contar a minha história” (Dna. Terezinha em depoimento dado à autora em 22/11/2003, publicado originalmente em Conceição Oliveira, Paratodos História, Scipione, 2004, p.14)

Minha mãe não veio de pau de arara, mas sua história é tão fenomenal quanto a de Dona Lindu, mãe de Lula. Dona Terezinha também não conseguiu estudar, embora como Lula também tivesse muita vontade de aprender.

Ela saiu de Riachão do Jacuípe, cidade do sertão baiano onde nasceu em 1940 (5 anos depois nasceria Lula) e só tinha dinheiro para passagem até Vitória da Conquista, cidade baiana na fronteira com Minas Gerais. Ela, então, conversou com o motorista e lhe explicou a situação. Ele foi solidário e permitiu que ela seguisse viagem até São Paulo. E de lá ela foi até Santos, onde nasci, em agosto do mesmo ano. Recebi o nome de Conceição como promessa, caso sobrevivesse. Sobrevivi, pois sou teimosa, como minha mãe, o Flávio, o Lula, a dona Lindu e milhões de brasileiros.

Minha mãe fez de tudo um pouco até encontrar o meu pai Carlos que me adotou, como Lula fez com Marcos, o filho de Marisa. Meu pai, ainda bem, ao menos no afeto e nas responsabilidades paternas, guarda mais semelhanças com Lula que com o seu Aristides.

Minha mãe lavou roupa para peão, trabalhou em restaurante, foi empregada doméstica. Certa vez, uma dentista, Dra. Alzira, foi até à casa dos patrões de minha mãe me conhecer, sem minha mãe saber. A dentista não tinha filhos e queria adotar. Minha mãe, que estava ocupada nas tarefas domésticas, quando foi servir café às visitas, me viu nos braços da dentista que - no relato de minha mãe - estava encantada comigo. Dra Alzira virou-se para minha jovem Dona Lindu, tal qual a professora de Lula propôs a mãe de Lula:

--Eu quero dar um futuro para ele, torná-lo alguém. A mãe de Lula disse: --Oxente! Ele já é alguém, é Luiz Inácio, meu filho! A minha foi mais incisiva:

-- Dos meus braços só quem tira minha filha é Deus. Não se preocupe, eu farei de tudo e  ela terá um futuro na minha companhia, o pai pode ter sido um cachorro, mas eu não.

O marido da Dra. Alzira vendo a força de minha mãe, percebeu que todas as suas posses seriam inúteis para convencer a minha dona Lindu a abrir mão de mim.

Minha mãe teimou. Teimou como todas as donas Lindus do Brasil. Colocou na escola a mim e aos meus outros quatro irmãos que vieram depois que ela conheceu Carlos. Cobrava-nos que fôssemos teimosos e insistíssemos a recusar um destino perverso de exclusão.

Minha mãe, assim como Dona Lindu, nunca leu Maiakovski, mas ambas em sua sabedoria materna sabiam que gente foi feita pra brilhar. Por isso também me emocionaram as cenas do macacão sujo de graxa do Lula que caminha orgulhosamente de volta pra casa com as marcas de um operário qualificado pelo Senai e ainda as que ele orgulhosamente exibe o diploma de torneiro mecânico. Meu segundo irmão, Carlos, também tinha e tem orgulho de ostentar seu macacão de petroleiro que lhe trouxe uma vida digna e à sua família.

O filme não dá conta de explicar a trajetória e a importância de Lula para o renascimento do sindicalismo autônomo no Brasil de fins dos anos 1970 e início da década de 1980, que culminou na fundação do PT e na queda do regime militar no Brasil. Falta tempo pra isso, precisava de outro filme pra contar esta história e nem Denise, ao participar da escrita do roteiro, nem Fábio Barreto quiseram contá-la.  Para quem quer conhecer esta história há uma considerável bibliografia, a começar pela biografia acadêmica  de autoria da pesquisadora Denise Paraná.

Ao ver o filme você encontrará a biografia de uma das milhares de famílias de retirantes brasileiros, cuja protagonista é uma mulher analfabeta com uma força incomensurável. O filme não será capaz de emocionar aqueles que buscam uma estética sofisticada. Mas ele emocionará todos aqueles que de algum modo podem ver na trajetória de Lula, de Dona Lindu e seus demais filhos uma história de teimosia, uma história de indivíduos que se recusaram a aceitar a cultura da miséria e da exclusão e diante de condições objetivas reiventaram-se e criaram uma cultura de transformação.

Lula não se limitou a sair do seu lugar social de miséria absoluta e sua liderança transformou e vem transformando a vida de milhões de brasileiros. Mas esta é uma outra história.