10 filmes: Os Irmãos Coen, por João Vítor Pessanha

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Um Homem Sério

Larry Gopnik, após terminar os últimos cálculos que tomam completamente um gigantesco quadro negro, vira-se para seus alunos e diz: "The Uncertainty Principle. It proves we can't ever really know... what's going on. So it shouldn't bother you. Not being able to figure anything out. Although you will be responsible for this on the mid-term". Com outras palavras (e razões), é exatamente o que o segundo rabino diz a Larry. "Aceite os mistérios da vida", o filme parece dizer, "O mundo [Deus?] opera por regras que você nunca vai entender". Mesmo que você seja correto, coisas ruins vão acontecer; mesmo que você não peça, Santana Abraxas vai chegar pelo correio; mesmo que você ajeite a antena, F. Troop vai continuar com a imagem ruim.  Desista de entender e aceite, ninguém lhe deve explicação alguma. Ou será que todas as punições não surgem justamente da passividade inicial de Larry? Que buscar justificativas é inútil comparado com ter ativamente tentando evitar essas situações? Ou não importa e de qualquer maneira o telefone ainda tocaria e o tornado ainda chegaria? Quem sabe? Mere surmise, diria o implacável estudante coreano.


Fargo

Quando o personagem em cena não está comendo, é porque está muito ocupado discutindo por dinheiro. Uma história de apetites e da distância a que estamos dispostos a ir pra nos saciar, Fargo foi também o filme que acabou com a teoria de que os Coen eram frios e indiferentes aos seus personagens, que só os usavam para expô-los ao ridículo. E foi também o filme em que, num mundo pós Pulp Fiction, o mainstream já estava pronto pra abraçar a obra da dupla.
Sobre apetites: os cineastas sempre utilizaram dinheiro como motivação nos seus plotse motivo da derrocada dos seus personagens, mas aqui isso permeia praticamente todas as cenas, das mais variadas formas. Pois nada é mais patético do que um criminoso tentando passar despercebido mas discutindo preço do estacionamento com um funcionário. Ou um pai tentando pechinchar o resgate da filha.

É no meio disso tudo que surge Marge Gunderson. Imensamente grávida, a policial tem a nossa simpatia desde sua primeira cena, o afeto dos Coen por ela transborda da tela. Interpretada pela magnífica Frances McDormand como a personificação do Minnesota Nice, nosso primeiro impulso é descartá-la, achar bonitinha, mas inofensiva. Ninguém tão sorridente e simpática pode ser durona o suficiente pra sobreviver a um filme desses caras — e nunca nos preocupamos tanto com uma personagem dos Coen como no clímax, mesmo após ela dar inúmeras amostras de sua capacidade e inteligência.

Capacidade e inteligência. Tudo o que Jerry Lundergaard (numa atuação tão extraordinária de William H. Macy que terminou por definir sua carreira desde então) não tem. Desonesto, mau caráter, inseguro e desesperado, Jerry arquiteta um plano infalível que não resiste ao primeiro imprevisto. E mesmo tão inquestionavelmente patético, nosso coração se parte a cada derrota, cada humilhação que ele passa. E nada é mais Coen do que um personagem dar um passo maior do que suas pernas e pagar por isso. Assim como o incrível controle do tom. Porque Fargo tem personagem sendo triturado, mas também tem as cenas entre a Marge e o marido; tem aquela sequencia noturna na estrada ,mas também tem o Jerry tentando limpar o para-brisas; tem Shep Proudfoot, mas também tem Mike Yanagita. Sem concessões, mas estranhamente comovente. Fargoé dos filmes definitivos do cinema americano moderno.


Barton Fink

A onda quebra na praia, corta para Barton chegando ao Hotel Earle. O recepcionista literalmente surge debaixo da superfície, Barton informa o seu andar ao ascensorista, 6. O número é repetido mais duas vezes. Barton observa o slogan do hotel no papel de carta, “A day or a lifetime”. Bem-vindo ao inferno, Barton.

Uma das causas de descolamento de papel de parede acontece quando, num clima quente, água fria passa pelos canos (referenciados de diversas maneiras ao longo do roteiro) atrás da parede, formando uma condensação que amolece a cola. Água e fogo. Barton e Charlie, seu vizinho no hotel, que, ao final do filme, deixa um rastro de chamas por onde passa. É no embate dessas duas personalidades (ou uma, dependendo da sua interpretação) que o filme se desenvolve. O homem comum das peças de Barton quer ser ouvido, quer mostrar "o poder da mente" (uma fala que, de novo, muda completamente de sentido dependendo do que o espectador tenha entendido do filme).

O contexto político também é abordado (talvez mais diretamente do que em qualquer outro filme da dupla): Barton alardeia a consciência social da sua obra mas é incapaz de escutar qualquer história daquele que ele denomina "homem comum" — e a última fala de Charlie reflete uma possível (e devastadora) consequência de se ignorar a classe trabalhadora.


Onde os Fracos Não Têm Vez

Junto com Ajuste Final, o filme mais tecnicamente espetacular da dupla. Mas aqui esse aspecto está ainda mais integrado com o que eles estão dizendo, aqui o estilo é o conteúdo. Cada tomada tem tempo pra registrar, mas o ritmo nunca é autoindulgente; cada enquadramento é uma obra de arte, mas também apenas uma pecinha em algo muito maior e relevante (a forma como uma tomada informa a seguinte é emocionante de tão perfeita); cada som incorporado à inacreditável trilha nos desconforta, mas também contribui pra nossa rendição ao clima. Falando em desconforto: Chigurh. Cada uma das suas aparições surge envolta de uma perversidade contagiosa, como se nada mais vá ser o mesmo após entrar em contato com "isso". Porque ele nem é um personagem de fato, mas uma personificação, daquilo que ta lá fora pra te pegar, de regras que você nem entende mas tem que seguir. E, principalmente, de tudo que Tom Bell não entende, que não se sente preparado pra enfrentar. 

Ou "...The crime you see now, it's hard to even take its measure. It's not that I'm afraid of it. I always knew you had to be willing to die to even do this job — not to be glorious. But I don't want to push my chips forward and go out and meet something I don't understand. You can say it's my job to fight it but I don't know what it is anymore. More than that, I don't want to know. A man would have to put his soul at hazard. He would have to say, OK, I'll be part of this world".

O mais interessante sobre pensar esse filme é como ele é o mais direto dos Coen (o único que deixa absolutamente claro sobre o que está falando), mas também um dos mais ricos em simbolismos. E como é horripilante, mas maravilhoso de se ouvir e olhar, como texto e subtexto se misturam, como é tudo perfeitamente calibrado e calculado ao mesmo tempo em que nada parece fabricado, tudo é orgânico... Ah, foda-se. O mais interessante é tudo. O Barry Lyndon deles.


Ajuste Final

Durante anos foi meu favorito. E sempre que revejo volta a ser o top. Coisa linda demais, dos poucos filmes que realmente merecem ser chamados maravilhosos (pra que dirigir, Sonnenfeld?). Ajude Final funciona como o clímax da primeira fase da carreira da dupla, quando as referências sexuais, políticas e religiosas dos filmes anteriores explodiram na tela. Mas claro que, em se tratando dos Coen, os temas são atacados sempre de uma maneira oblíqua, nada é pra ser entendido preto no branco. Então a saga de Tom Reagan começa como a de um homem em busca do seu chapéu (que claramente significa muito mais) e vira uma história de redenção, mas na verdade é a de um homem em busca da sua identidade e de restaurar a ordem do universo, que acaba perdendo sua alma no caminho e assegurando seu chapéu (que talvez seja só um chapéu mesmo). Único.


O Grande Lebowski

Talvez o filme mais investigado, escrutinado, analisado e cultuado da nossa geração. E a sensação é de que ainda não arranhamos nem a superfície de tudo que ele tem para nos oferecer (como aquela foto do Nixon). Mas o que é O Grande Lebowski? Parte stoner movie, parte noir, parte comédia e 100% Coen. O filme já foi classificado como um estudo da relação entre estrutura genética e demográfica, subversivo, uma metáfora/sátira sobre método empírico de análise, surrealismo filtrado pela banalidade inerente ao estilo de vida californiano, uma reflexão e rejeição aos medos impostos por sistemas autoritários. Talvez seja tudo isso, talvez não seja nada disso (provavelmente é muito mais, só não conte com os Coen pra te dar alguma dica). Ou talvez o filme não seja sobre nada especificamente, talvez eles só quisessem mesmo desconcertar seus críticos e admiradores. E, convenhamos, quem se importa? Certamente não o Dude, mais preocupado com a decisão contra Jesus próximo sábado do que em decifrar o sentido da sua existência ou mesmo entender a trama do seu próprio filme. No final, o que fica não são os geniais subtextos (o tapete realmente dava o acabamento para a sala), a direção brilhante, as quotes instantâneas, a trilha de matar Tarantino de inveja ou a trama que pouco (nada) importa. O que fica é o Dude. Mijam no tapete, batem, usam, enganam, destroem o carro, matam o amigo, e o Dude ta lá, perseverando (“You know, strikes and gutters, ups and downs”), fighting the good fightE assim, como o Stranger, eternamente torcendo pra que ele consiga derrotar Jesus

"'The Dude abides'. Dunno about you, but I take comfort in those words. It's good knowin' he's out there. The Dude. Takin' 'er easy for all us sinners. Shoosh. I sure hope he makes the finals."

O herói que queríamos merecer.


Gosto de Sangue

A abertura já é quase uma carta de intenções: “The world is full of complainers. An' the fact is, nothin' comes with a guarantee. Now I don't care if you're the Pope of Rome, the President of the United States or Man of the Year, something can all go wrong. Now go on ahead, ya know, complain, tell your problems to your neighbor, ask for help, 'n watch 'im fly. Now, in Russia, they got it all mapped out so that everybody pulls for everybody else... that's the theory, anyway. But what I know about is Texas, an' down here... you're on your own”. Corta para uma estrada, à noite.

Não fica nisso: a ambientação, o controle do tom (e a facilidade quase sobrenatural com que este varia sem perder o foco), o visual perfeitamente calibrado entre o estilizado e o direto, os diálogos no limite da paródia, a subversão de gênero, o humor inesperado (e que vai além do dark), o "rico soltando um monstro que ele absolutamente não consegue controlar", personagens completamente perdidos... Os Coen chegaram.

Muitos estreantes escolhem fazer um thriller como primeiro filme. Além de ser mais barato, é um gênero que oferece possibilidades de "se exibir" ao mesmo tempo em que oferece a segurança de regras bem definidas. Aqui, logo de cara os irmãos já descartam talvez a mais importante: o suspense não surge de descobrir o que está acontecendo ao mesmo tempo que os personagens, nem mesmo por antecipar o impacto de uma revelação — como Hitchcock —, mas de já ver tudo que vai acontecer mapeado, de se ver impotente diante das escolhas erradas dos personagens. Logo na estréia os Coen já nos transforma em espectadores de uma pecinha infantil, gritando desesperados pra mocinha olhar pra trás, que o malvado ta chegando. E toda vez que nos achamos mais espertos que os personagens, acontece alguma coisa que nos pega na curva. Então fica quieto e espere pelo melhor.

Esse domínio, essa segurança, que faz de Gosto de Sangue uma das estreias mais incríveis do cinema (só consigo pensar em Orson Welles como outro cineasta que já chegou tão completamente pronto, essencial e influente). "Gênios" nem começa a explicar.


O Homem Que Não Estava Lá

Neste ponto de suas carreiras, 30 anos da sua estréia com Gosto de Sangue e 16 longas desde então, crítica e público já desistiram de tentar decifrar o que se passa nas mentes de Joel e Ethan Coen. Apesar de compartilharem inúmeros aspectos, seus filmes nunca são o esperado, os resultados cada vez mais particulares e absolutamente únicos. Não adianta, você nunca sabe o que está por vir. Em retrospecto, entretanto, algumas pontes podem ser estabelecidas. Pegue o final de Fargo, por exemplo. Mortes, vidas destruídas, horror, caos. Tudo pra quê? Um punhado de dinheiro? Por mais que tente, Marge não consegue entender. Nos seus três filmes seguintes (e de certa forma, além destes) os Coen se mostraram fascinados por essa questão: por que as pessoas fazem o que fazem, por que são quem são e o que diabos está acontecendo (mesmo que essa última talvez aflija apenas o Dude). Na obra-prima neo-noir O Homem Que Não Estava Lá, Ed Crane (Billy Bob Thorton, numa atuação pra colocá-lo entre os grandes de todos os tempos) é perguntado, por diversas vezes, que tipo de homem ele é. Em outros momentos, tentam defini-lo — entusiasta, amante da música, uma obra de arte, um homem fora do seu tempo e, finalmente, um barbeiro. Mas Ed não aceita nenhuma dessas alcunhas (“Eu corto cabelos, mas não me vejo como um barbeiro”), ele quer transcender sua condição, ele quer mais! Mais do que exatamente ele não sabe. Mas se chantagear o amante da sua esposa talvez lhe garanta os meios de alcançar esse intangível, por que não? Num mundo que já viu duas grandes guerras, convive com a ameaça vermelha, avanços tecnológicos tão incríveis (lavagem a seco!) quanto assustadores (bomba de hidrogênio!), qual a diferença? Nesse mundo magnificamente fotografado por Roger Deakins, os personagens estão sempre a um passo da escuridão absoluta. Perto do final do filme, seu advogado (Freddy Riedenschneider, de Sacramento) o chama de homem moderno e, por um breve momento, Ed até acredita. Mas isso seria verdade no começo da história. Após atravessar uma espiral de violência e desespero, após suas desilusões com a modernidade, com instituições e arte, com o mundo, Ed talvez seja o primeiro dos homens pós-modernos. Uma espetacular comédia noir de humor negro sobre a condição humana contada através do ponto de vista de um barbeiro. Não é todo dia que um desses aparece.


Arizona Nunca Mais

Paternidade. Nicolas Cage. Sul. Penteados malucos. Responsabilidade. Screwball. Shaky cam (e que desperdício o Sonnenfeld ter virado diretor). Linguagem. Slapstick. Gente burra fazendo burrice. Holly Hunter. Família. Penteado maluco de Nicolas Cage. Destino. Pica-Pau. Gosto de Sangue foi das estreias mais impressionantes do cinema, mas este aqui é tipo o nascimento dos Coen como gênero. Um clássico.


E Aí, Meu Irmão, Cadê Você?

Lembro de alugar a fita e assistir pelo menos umas quatro vezes antes de devolver, filme gostoso demais. Tudo que eles fazem aborda, de um jeito ou de outro, encruzilhadas morais e senso de identidade. E E Aí, Meu Irmão, Cadê Você?é o filme em que os Coen mais chegam perto de investigar as origens dessas questões, de onde tiramos essas definições: todas as situações e alusões são simultaneamente derivadas da cultura clássica (indo muito além de utilizar a Odisseia apenas como estrutura), do cristianismo e das referências culturais do Sul dos EUA. E o fascinante aqui é perceber como um único elemento pode ter conotações completamente diferentes dependendo do enfoque, da referência — é muito massa revisitar o filme tendo esse aspecto em mente. Capaz de ser o mais subestimado dos filmes deles, aliás. E talvez essa mistura de referências explique por que este é o filme mais afetuoso deles. É como se entendessem que, com tanta bagagem, tantas referências contraditórias, é quase impossível que a gente não faça besteira atrás de besteira. E é dessa compreensão que Oh Brother tira um carinho raro da dupla para com seus personagens e ambiente e acaba virando um feel good movie, mas sempre dentro dos termos da dupla. Por falar em ambiente, esse é dos melhores exemplos de algo em que os irmãos são insuperáveis: a criação de mundos perfeitamente definidos, em que todo elemento é pensado em cada detalhe. Trilha, direção de arte, figurinos, o visual (Roger Deakins maior do universo) e, principalmente, linguagem. É tudo irretocável, perfeito. E como que pra deixar claro que são mestres, ainda é engraçado pra cacete.



Menção Honrosa: Balada de um Homem Comum

É muito louco lembrar disso agora, mas quando O Grande Lebowski saiu, ninguém gostou. Muita gente (eu incluso) achou engraçado, divertido, interessante... mas ahn? Isso depois de fucking Fargo (Oscars, consagração, unanimidade, blablabla...)? Hoje é o cult da nossa geração, mas na época...

Porque não é que os filmes dos Irmãos Coen precisem de tempo pra serem devidamente apreciados, a gente é que precisa de tempo para apreciá-los. Pra aprender a vê-los, se "acostumar", mergulhar neles e só então tirar o que estão oferecendo — "entender" acho que definitivamente não cabe aqui. Com Balada de um Homem Comum é a mesma coisa: nunca é uma questão de avaliar suas qualidades (isso não se discute, o filme é maravilhoso, talvez o melhor do ano passado), mas é inegável que é, e será por muito tempo, ainda um mistério pra gente. Só com tempo vamos entender o que temos em mãos, como o filme dialoga com o resto da obra da dupla, como vai influenciar o trabalho deles daqui pra frente (como foi o caso de O Homem que Não Estava Lá, pouquíssimo apreciado e ao mesmo tempo absurdamente relevante na evolução deles). Não é de forma alguma dizer que existem dez filmes deles que acho que estão na frente (sendo que eles têm uns oito que se tem certeza absoluta ser o melhor).

Colocar este filme aqui foi meu jeito de dizer como esses caras são geniais.