A América Latina sem esperança de Lucrecia Martel

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por Cesar Castanha Numa casa afastada, cenário de O pântano (dir. Lucrécia Martel, 2001), Momi (Sofia Bertolotto), uma garota adolescente se arrasta entre sussurros apelando pelo afeto de Isabel (Andrea López), uma jovem que trabalha em sua casa. Ela está quase sempre de maiô e seus cabelos têm uma textura oleosa, de algo mal-lavado, o que faz com que seu irmão lhe dê o apelido de “Momi Suja”. Em A menina santa, Amália (María Alche) sussurra orações católicas repetidamente, para decorar seus versos. Em um encontro sobre vocações, ela diz para a amiga ter encontrado sua missão. Onde estão as garotas filmadas por Lucrécia Martel? O cinema argentino mais comercial, que nos últimos anos tem entrado com força no mercado internacional (O segredo de seus olhos e Relatos selvagens são provavelmente os exemplos mais notórios nesse sentido), não dão conta dessas personagens. Ainda assim, elas são figuras de uma branquitude colonial muito presente na América Latina. No Brasil, penso que quem tomou um interesse por essas personagens foi a carioca Anita Rocha da Silveira, que em 2015 lançou seu primeiro longa-metragem, Mate-me por favor, sobre uma juventude entediada da Barra da Tijuca, fascinada com narrativas de violência. Diferentemente dessa produção argentina de pretensões hollywoodianas, de uma branquitude naturalizada, o projeto cinematográfio de Martel — como, por outros caminhos, também é o de Silveira — é de propor olhares para a frustração da iniciativa colonial da América Latina. É do encontro com uma classe média isolada, psicótica e delirante (penso imediatamente no livro Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros, em que o autor Christian Dunker analisa as configuraçõe desse isolamento na sociedade e no cinema brasileiros). Essa é também provavelmente a grande permanência da obra de Martel em Zama, seu primeiro longa-metragem de ficção desde A mulher sem cabeça (2008) e uma adaptação do romance de Antonio Di Benedetto, publicado em 1956. O filme aborda a expedição do oficial espanhol Diego de Zama (Daniel Giménez Cacho) em busca do líder rebelde Vicuña Porto (Matheus Nachtergaele) e foi exibido na sessão de abertura do X Janela Internacional de Cinema do Recife com apresentação da cineasta. O Festival também trouxe, nesta edição, uma retrospectiva da obra de Martel. E se Zama, à primeira vista, incomoda por um certo comodismo estético à moda do cinema contemporâneo (há uma busca mais esforçada pelo inquietante em cena, o que vinha muito organicamente nos filmes anteriores de Martel pelo seu próprio modo de abordar os personagens e a experiência coletiva), a exibição de seus outros filmes funcionaram também como uma oportunidade de repensar Zama e refletir sobre um certo fracasso moral e político da América Latina. Em 2017, quando uma onda de conservadorismo branco toma países como o Brasil e a Argentina, o cinema de Martel forma um mosaico do fim da esperança e de uma imobilidade diante da crise. As garotas de seus filmes, a juventude, como no cinema de Silveira, têm a postura diante do mundo marcada pela História do colonialismo falido, que herdam e, sem propósito ou desejo, levam adiante.