Bem-vindo a Nova York

Escrito en BLOGS el

O vício traz certo encanto estético. O cinema descobriu isso logo cedo, o gênero de filmes de gângster explodiu na era sonora e se debruçava sobre um universo de corrupção concreta e moral glamour e uma mensagem: o crime não compensa. Se isso já era o próprio norte ideológico do gênero, o Código Hays garantiria que ele não se perdesse desse caminho por um bom tempo. Assim, o filme de gângster consolidou uma fábula do vício, com motivações e consequências definidas.

Há muitas coisas que me incomodam em Bem-vindo a Nova York (Abel Ferrara, 2014). É possível que o filme se configure pra mim como um dos mais problemáticos “baseado em fatos reais”, um gênero perigosíssimo porque desafia o público a entender o cinema como algo além de uma representação. Alguns belos filmes deste ano brincaram com o artifício como meio de representar e trouxeram a questão pro centro do debate. Bem-vindo a Nova York é um bom caminho para discutir o cinema como exposição de um fato e o interesse que há nisso.

Antes de tudo o filme não pode fugir do fato de ser uma leitura do caso de Dominique Strauss-Khan, o líder do FMI que abusou sexualmente uma camareira em Nova York. Strauss-Khan também era uma liderança esquerdo-centrista forte na França, e tinha grandes chances de disputar e ganhar a eleição presidencial contra a direita que se aproximava. Mesmo que Ferrara não tenha intenções políticas (e acho que tem), a representação está clara. Colocar um milionário que lamenta o fisco francês como Gerard Depardieu para interpretá-lo não é uma escolha muito isenta de julgamento. Ainda mais quando o filme começa com Depardieu justificando sua interpretação na falta de empatia que sente por Strauss-Khan.

Ferrara tem todo o direito de contar a história a partir de um discurso posicionado e engajado, ainda mais esta rica história de poder não controlado e da corrupção inerente a ele. Mas me parece que o diretor foi particularmente tendencioso na maneira como fez isso. Depois de estabelecer a distância emocional entre Depardieu e o seu personagem, que muito responsabilizo pela linearidade e superficialidade deste, Bem-vindo a Nova York parte para uma série de sequências absurdas que ressaltam o vício do personagem até o momento do estupro.

Logo na segunda cena, há uma recriação surreal do universo político. Não é de agora que Ferrara gosta de apontar corrupção moral para todos os lados. Ele está acostumado com o filme de gângster, dirigiu um dos melhores: O Rei de Nova York (1990). O fetichismo com o corpo da mulher também foi essencial ao filme gênero, se bem que não acho que seja tanto uma necessidade do gênero como um reflexo do fetiche de seus diretores. Se Bem-vindo a Nova Yorkcontesta esse fetiche é apenas a partir de certo ponto. De qualquer forma, acho que as cenas de sexo mais próximas do sensual só se tornam realmente um problema quando cumprem a função de antecipar o crime do personagem. Mesmo assim, elas nunca chegam a ser sensual de fato, a imposição do corpo de Depardieu, desproporcional e muitas vezes visto com repulsa pela câmera, impede isso. Enfim, o cinema de Ferrara traz um cheiro de cocaína e sexo, atraente para seus personagens e muitas vezes repulsivo para quem vê o filme.


Novamente, isso não seria um problema se o diretor estivesse mais uma vez contando uma fábula, como em O Rei de Nova York, Vício Frenético, Blackout, O Vício e Cidade do Medo. Mas é uma história real aqui, com potencial político prático. Além disso, enfeitar o estilo de vida de Strauss-Khan não é interessante do ponto de vista da denúncia (pois coloca o ator do crime como um caso extremo de vício) nem da construção moral da narrativa. O sexo livre ou com prostitutas não deveria de maneira alguma ser associado ao estupro como um equivalente. Transformando em moralidade perversa a sua justa repulsa a um crime, Ferrara, para enfatizar a realidade dos fatos, escolhe uma decoupagem seca e sem filtros de luz. O excesso, que ele encontrou com tanta beleza no vício de outros personagens, está nos pontos errados de Bem-vindo a Nova York, uma pena.