Boyhood: da infância à juventude

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Pouco antes de eu entrar na sessão de Boyhood – da infância à juventude (Richard Linklater, 2014) recebi de um amigo cinéfilo uma mensagem muito carinhosa. Nela, ele dizia que compartilhava do meu gosto pelo pequeno cinema, pelo filme que é quase uma crônica ou uma boa anedota, que manifestei na conversa com Francisco publicada aqui. Lembro disso agora porque a mensagem dele e essa ideia do filme como crônica da vida ficava voltando a minha cabeça enquanto cada corte revelava uma mudança drástica na fisionomia de Mason Jr. (Ellar Coltrane).

Boyhood fez muito alvoroço por ter sido filmado durante 12 anos, acompanhando o crescimento e envelhecimento do elenco, principalmente o do protagonista, que começa o filme com 6 anos e o termina com 18. Há razão nesse encanto. O tempo, no filme, é como um assistente de direção. Ele coloca as rugas nos personagens, alguns quilos a mais ou a menos, acne, cabelos brancos, tons de voz. Percorrendo os primeiros anos do século XXI, o tempo também assume a responsabilidade pela trilha sonora, direção de arte, figurino e muita coisa do roteiro.

Linklater costuma ser bem-sucedido na estranha tarefa que coloca a si mesmo de dirigir o tempo. Ano passado eu julguei que o belo Antes da Meia-Noite fosse uma conclusão da trilogia Before. Estava errado. A saga continua com Boyhood. Lá pela terceira mudança da Mãe (é esse o nome da personagem de Patricia Arquette nos créditos, apesar de seu nome, Olivia, ser dito no filme), pensei em como Boyhood não era um filme sobre a vida, mas era vida em si.

Mas os últimos atos do filme falharam em sustentar em mim essa impressão. É bom que isso tenha acontecido, pois ela partia de um princípio errado mesmo que aplicado a qualquer outro filme. O artifício cinematográfico existe, é real, mas o que é capturado por ele, por mais que se aproxime de uma estética realista, é representação. É muito bom discutir isso num ano em que tantos filmes reconhecem o cinema como artifício, experimentam e brincam com esse jogo de representações da construção de cena. O Congresso Futurista, O Grande Hotel Budapeste e principalmente Garota Exemplar estão conscientes da própria boneca russa que colocam e dispostos a debater a representação, refletir sobre ela através dela. A obra-prima do nosso cinema Ela Volta na Quinta é outro caso curioso, não tendo receio de usar o cinema como possibilidade de engano. Com um elenco que interpreta a si mesmo em uma narrativa fictícia, o filme não é muito diferente de um inteligentíssimo truque de mágica. Você sabe que tanto a magia do truque quanto o real do filme são ilusões. Mas não consegue evitar a perplexidade diante do ato e, assim, permite-se acreditar.

Acho que é no último ponto, ao não ceder minha deliberada cumplicidade com a ilusão, que me distancio de Boyhood. Mas, sejamos justos, Boyhood é mais necessitado da crença na realidade falsa que Ela Volta na Quinta, este é honesto o bastante para resistir à revelação do truque. O real falso de Boyhoodguarda um discurso um tanto perigoso, principalmente quando de real passa a ser entendido por ele mesmo como natural.

Momentos de uma família americana podem ser apenas isso mesmo, mas podem facilmente virar lições de uma família americana. E o filme abraça o didatismo algumas vezes na exposição das fases da vida. Acho que a aproximação do garçom a Olive no restaurante no final do filme se destacou negativamente por colocar a construção da narrativa num lugar meio brega. Mas, pensando bem, não acho que ela seja um dos grandes problemas do filme. Estes normalmente estão nas morais que o protagonista aprende com o bons modelos masculinos da sua vida, o chefe, o professor e quem seu pai se torna depois do segundo casamento.

Com essas referências positivas e outras tantas negativas, Mason Jr. cresce normal, paquera, tem uma namorada, leva um pé na bunda, interessa-se por fotografia, vai para a faculdade. No doce fluxo da vida de Mason as turbulências nunca estão nele, mas sempre dos adultos ao redor dele. Ele segue isento de culpa e responsabilidade. Mason Jr. é um estereótipo de crescimento da nossa sociedade. Os personagens de Arquette e Ethan Hawke creditados como Mãe e Pai denunciam um pouco isso. Não é uma escolha que fale contra o filme, queria apenas questionar essa ideia de superação da narrativa que o cerca. Até porque Boyhood é muito feliz sendo o estereótipo de uma narrativa de crescimento.


Sua grandeza está toda na direção sublime de Linklater. O filme escolhe passar o tempo ativando as memórias sensoriais mais íntimas de uma geração. Um amigo disse que Boyhood faz pela atual geração o mesmo que A Rede Social. Embora não se aproxime do segundo como observação social e cultural, Boyhood é uma louvável recordação de sentidos.