A câmera para mim, registros de uma geração

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[caption id="attachment_743" align="alignnone" width="500"]Sarah Polley filma a si mesma e a sua família em "Histórias que Contamos" Sarah Polley filma a si mesma e a sua família em "Histórias que Contamos"[/caption] O MOV – I Festival Internacional de Cinema Universitário do Recife não pode ser entendido como uma amostragem perfeita de futuro cinema, tanto porque nem todos os cineastas começam estudando e produzindo dentro da universidade quanto pela influência que o gosto dos curadores possa ter tido na seleção. Mas não importa. O MOV é um bom indicativo de cinema presente. Os filmes exibidos nos quatro dias de Festival refletem questões que têm ganhado espaço no cinema dentro e fora do Brasil. Antes de tudo, há que se celebrar que o cinema nacional está perdendo sua identidade sólida, única e indivisível. Fórmulas de sucesso que levaram 3 ou 4 filmes a indicações ao Oscar nos últimos 20 anos não mais interessam, o cinema brasileiro agora é pessoal. E, sendo pessoal, parte do repertório, do ideal e do domínio de cada diretor. É certo que a teoria de autor foi colocada pra facilitar o trabalho da crítica, mas acho que é seguro dizer que o que tem sido feito no Brasil é autoral, que cada filme só poderia ser assumido por aquele que o fez. Isso vale inclusive para universitários que se aventuram pela primeira vez a construir e terminar algo, talvez principalmente para eles. Se eu for listar os diretores que considero mais interessantes em ação no Brasil hoje, um deles ainda está na faculdade e outros três não têm mais que dois longas-metragens no currículo. Mas, apesar dessa diversidade evidente, há uma expressão estética comum a muitos filmes contemporâneos: a consciência da câmera. Já disse antes que o cinema contemporâneo seria o paraíso de André Bazin. Não sei se há mais barreiras a serem quebradas na busca pelo realismo, talvez o reconhecimento midiático do vídeo como cinema, que é justamente o que muitos diretores que têm aparecido agora estão fazendo, mesmo alguns desavisadamente. Estamos vendo agora em ampla escala as marcas do VHS e da câmera digital na minha geração. Registros familiares e pessoais viram filmes, mas, se pensarmos bem, quando foi que eles deixaram de ser filmes? A novidade talvez seja dizer que nossos registros pessoais agora são exibidos na tela grande. No MOV, vimos O Sorriso de Dora (Diogo Condé Montenegro, 2014) e Se (Ian Capillé, 2014), o primeiro traz o afeto pela imagem fotografada, em movimento ou não. É ao colocá-la numa plataforma de audiovisual, com ritmo dado pela montagem e narração em off, que ela é redescoberta pela possibilidade cinematográfica. Em Se é diferente, o cinema existe no registo, antes do filme. Cada tomada desse diário, fictício ou não, não importa, tem uma história própria, uma razão de ser única. Isso não é verdade para o filme comum, em que os planos só fazem sentido integrados. O que Capillé faz ao material que tem e é independente é dar um novo sentido, fazer um novo filme. Os fetichistas pelo Super 8 abriram tanto o bocão com o manifesto-de-um-filme-só que é o maravilhoso Avanti Popolo (Michael Wahrmann, 2013), e que também pode ser perfeitamente entendido dentro dessa lógica contemporânea de afeto pelo registro, mas os novinhos do VHS muito naturalmente os superaram. Há uma problematização moral nesses filmes que voltam a câmera para si. Incomoda em alguns certa perspectiva de autopiedade. Nesse sentido, Elena (Petra Costa, 2012) deveria ser o mais difícil de encontrar aceitação. Há uma insistente autoindulgência na fala da diretora. A imagem registrada do filme, no entanto, é poderosíssima, carrega a força da consicência da narrativa. O grande momento do filme é quando Petra interfere na imagem da irmã dançando. É de novo a construção do cinema a partir de outro cinema (sem dúvidas, mais puro). Outro filme que age sobre o material prévio, também um VHS, é Nossos Traços (Rafael Spínola, 2013), um dos meus preferidos do ano passado. Diferente de Petra, Spínola dá distância ao que está registrado, reconhece que o afeto, o sentimento e a dor não é só dele, é compatilhada em família ou em grupo. Spínola, com Nossos Traços e agora com seu mais recente, Gigante, faz cinema individual, mas não individualista. Se resta alguma dúvida de que isso se tornou um gênero, é bom perceber como Sarah Polley transformou a ideia do registro real em artifício narrativo com a ilusão do registro real em Histórias que Contamos. A questão se inverte mais uma vez quando Polley, ao final do filme, assume o artifício e coloca todo o gênero a debate por uma questão ética. Teriam esses diretores o direito de expor registros familiares? É importante que isso seja debatido, mas não acho que algum dia teremos a resposta correta.