Canções de uma Utopia Perdida: Música, Maestro!, Tempo de Melodia e os musicais da Disney hoje

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[caption id="attachment_1147" align="aligncenter" width="936"]Pecos Bill Pecos Bill[/caption]   Introdução Falo aqui por mim, não por minha geração. Apesar de ter a pretensão de, neste ensaio, trabalhar questões que perpassam não só por um sujeito, mas por todo um grupo humano de tempo e espaço específicos com quem acredito compartilhar essas experiências. Específicos porque não sou capaz de perceber em nenhuma outra geração, anterior ou posterior, a relação que a minha geração, uma que vai dos nascidos na segunda metade dos anos 1980 até meados dos anos 1990, tem de afeto com determinado grupo de filmes, em sua maioria musicais e em sua maioria produzidos pelos estúdios da Disney. Mas não usarei aqui pesquisa de opinião alguma que prove estatisticamente esse gosto de uma geração. Falo por mim. E, usando a mim mesmo como sujeito de estudo, aplicarei as teorias de Fredric Jameson e Linda Hutcheon sobre o funcionamento da nostalgia no pós-modernismo, além do estudo de Stuart Hall sobre a questão da identidade pós-moderna. O questionamento aqui é por que e como eu, ou o sujeito histórico, social e geográfico que represento, desenvolvi este gosto durante a infância e insisto em retornar a ele ainda agora. No primeiro momento deste ensaio, pretendo introduzir a teoria de Hall sobre a identidade cultural pós-moderna e apresentar o sujeito eu a partir dela. Em seguida, fazer o mesmo com os estudos de Jameson e Hutcheon, apontando suas contradições e aplicando-os na situação em análise. A intenção é fechar o trabalho com uma compreensão histórica e acadêmica do gosto do sujeito. Para criar um foco no estudo, esse gosto, que abraça uma quantidade considerável de produções Disney e outras animações musicais, será compreendido como o gosto por dois filmes específicos, Música, Maestro! (Robert Cormack, Clyde Jeronimi, Jack Kinney, Hamilton Luske e Joshua Meador, 1946) e Tempo de Melodia (Clyde Jeronimi, Wilfred Jackson, Jack Kinney e Hamilton Luske, 1948). Os dois são compilações de curtas lançadas nos cinemas em um momento que as dificuldades financeiras impediam Disney de produzir outro longa-metragem — Bambi, em 1942, era então o último do gênero. Esses filmes foram escolhidos pela tentativa de criar uma evidência que comprove a dissociação do gosto trabalhado a histórias, gêneros ou tipos de animação específicos, pois abarcam uma diversidade de todos esses, e também por produzirem imagens historicamente questionáveis, facilitando a relação entre nostalgia e ironia, como veremos adiante. A identidade cultural na pós-modernidade, ou o estudo de Stuart Hall É primeiro preciso compreender o que é, para Hall, a questão da identidade no pós-modernismo. Percebendo o que diz o autor, é praticamente uma crise em andamento da identidade individual e coerente. Um passo além da concepção sociológica de identidade (segundo a qual a identidade é o resultado de uma sutura do sujeito social a sua estrutura) e uma oposição da concepção iluminista — a do “indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação, ‘cujo’ centro consistia num núcleo interior” (Hall, 1992). No pós-modernismo, o indivíduo perde sua condição de eu coerente para um conjunto identidades historicamente construídas e contraditórias. Para justificar essa mudança, Hall utiliza a teoria do deslocamento, de Ernest Laclau. Para Laclau, as sociedades modernas têm, no lugar de um princípio articulador único, uma “pluralidade de centros de poder”. As identidades do pós-modernismo, portanto, marcam por não ter estabelecida uma mesma raiz, permitindo-se uma pluralidade, “a criação de novas identidades, a produção de novos sujeitos”. Uma marca associada à globalização. Como forma de justificar as mudanças da concepção de identidade iluminista para a pós-moderna, Hall aponta para cinco pontos de descentração, teorias, estudos e movimentos que quebram a noção de indivíduo completo e indivisível. Para os propósitos deste artigo, chamo a atenção para dois dos pontos de descentração mencionados por Hall: a descoberta do inconsciente por Freud e o movimento feminista. A teoria de Freud desconstrói o homem cartesiano do “penso, logo existo” de Descartes — uma das manifestações filosóficas do sujeito iluminista. De acordo com uma leitura do psicanalista feita por Jacques Lacan, a criança não se desenvolve a partir do próprio ser, mas sim em uma relação de espelho com suas vivências sociais e determinados grupos já historicamente estabelecidos. O movimento feminista é interessante por seu caráter de ser um agente da modificação na concepção do indivíduo tanto quanto uma consequência dela. Através do que Hall se refere como o teatro da revolução, o movimento se opunha às organizações políticas de massa — sejam de esquerda ou de direita — e é, novamente, tanto consequência quanto causador, de uma fragmentação da política de acordo com requisições sociais específicas — dos negros, gays, pacifistas, etc. — vendo nascer a política da identidade. O que precisa ser compreendido sobre o que foi visto da concepção de identidade pós-moderna até agora é como reflete a minha própria identidade, como sujeito deste ensaio. Quando criança, eu construía em mim (em uma relação de espelho Freud-Lacaniana) um conjunto de identidades contraditórias de microgrupos já historicamente constituídos. Ou seja, de acordo com as concepções de identidade da pós-modernidade, o sujeito eu não é único nem indivisível e coerente. Não tendo eu uma identidade única, o gosto que será estudado aqui não se justifica em mim, mas em grupos históricos que se assemelham ao meu, auxiliando-me na pretensão de um estudo sobre o gosto de uma geração mais que de um sujeito. Também há a questão do que, na incoerência e contradição do meu sujeito, as do sujeito de microgrupo do qual faço parte, leva a mim, ou a nós, a uma revisão pessoal, e necessariamente também coletiva, desse gosto. Antes de chegar nesse ponto, quero utilizar Stuart Hall para mais um objetivo: tecer a identidade cultural do objeto de gosto, os filmes da Disney. [caption id="attachment_1146" align="aligncenter" width="1011"]All the Cats Join In All the Cats Join In[/caption] Cultura nacional: comunidades imaginadas Os filmes escolhidos para a análise do gosto contêm alguns curtas-metragens com histórias e lendas americanas que reproduzem um discurso com inteção de justificar ou manter a moral e as tradições nacionais. O que nos traz, mais uma vez, a Hall: “As culturas nacionais são compostas não apenas de instituições culturais, mas também de símbolos e representações. Uma cultura nacional é um discurso — um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos [...]. As culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre "a nação", sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos estão contidos nas estórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas. Como argumentou Benedict Anderson (1983), a identidade nacional é uma ‘comunidade imaginada’” (HALL, 1992). Na modernidade, essa “comunidade imaginada” é difundida através de uma narrativa da nação, imagens, histórias, eventos e símbolos presentes na literatura ou em produtos midiáticos tais quais os filmes trabalhados aqui. Esse discurso nacional, de acordo com Hall, seria dividido entre o desejo pela mordenidade e por voltar a uma espécie de “tempo perdido”, em que a nação era grande, para restaurar uma identidade digamos tradicional, de uma tradição imaginada. Esse contraste está claro entre os três discursos nacionais mais incisivos de Música, Maestro! e Tempo de Melodia, o curta All the Cats Join In, em que um grupo de adolescentes para andar de carro, dançar ao som de uma jukebox e tomar uma banana split, e os The Legend of Johnny Appleseed e Pecos Bill, ambos histórias de pioneiros (pioneers, os homens da ocupação do Oeste americanao e portanto personagens perfeitos para uma lenda de fundação nacional). A partir dessa noção de identidade nacional, Hall vai destrinchar uma série de tendências do mundo pós-moderno que a afirma e questiona. São tendências que começaram a se manifestar algumas décadas antes dos filmes e foi ganhando mais força com o crescimento do mundo globalizado. O importante é que Música, Maestro! e Tempo de Melodia são obras de um momento pós-Guerra (uma guerra de identidades políticas, nacionais, étnicas e religiosas) em que o resgate do discurso nacional se fazia necessário. A mecânica do meu resgate, agora e enquanto criança, desse discurso veremos a seguir. A cultura da nostalgia, Fredric Jameson e Linda Hutcheon De Hall para Jameson, surgem algumas questões para trazer de volta à análise, partindo daquelas referentes à identidade nacional (inegavelmente racista, xenofóbica e ahistórica) de The Legend of Johnny Appleseed e Pecos Bill. Para Jameson (1993:50), não deveríamos ver o nacionalismo como simplesmente o fruto de uma paranoia do pós-guerra, mas sim como uma nostalgia por uma autonomia social não mais disponível. Certamente The Legend of Johnny Appleseed e Pecos Bill são dois filmes profundamente nostálgicos no aspecto da autonomia social. O problema é que a autonomia social que eles proclamam e lamentam raramente é uma verdadeira. Justiça seja feita a John Chapman, o Johnny Appleseed, que de acordo com evidências históricas percorria sozinho o Oeste conquistado plantando macieiras, mas muito certamente Pecos Bill não trouxe a chuva da Califórnia ao Texas, montou um ciclone e é o responsável pelo deserto pintado como dizem as lendas sobre o personagem. Pecos Bill surgiu em 1917 e tem passado por releituras desde então, é inocente no sentido de não pretender coerência com a realidade, mas seu motivo de surgimento é muito bem justificado pelo momento histórico. Segundo Jameson: “O filme nostálgico, geralmente consistente com as tendências do pós-modernismo, procura gerar imagens e simulacros do passado, assim — em uma situação social em que historicidade genuína ou tradições de classe se tornaram débeis — produzindo algo como um pseudopassado como compensação e substituição por, mas também como deslocamento de, esse diferente tipo de passado que tem (junto com visões ativas do futuro) sido um componente necessário para grupos de pessoas em outras situações na projeção de sua práxis e na estimulação de seu projeto coletivo.” (JAMESON, 1986:310) Esses são apenas os segmentos historicamente contextualizados, há alguns outros protagonistas de identidade iluminista nos filmes. Johnnie Fedora and Alice Bluebonnet é sobre um chapéu macho que cruza uma metrópole em busca do seu chapéu fêmea, e Peter and the Wolf traz um garoto que, sozinho, sai para matar um lobo — originalmente, essa é uma história soviética, o que alimenta o argumento de que esses filmes são mais nostálgicos por um espírito empreendedor autônomo perdido que uma paranoia americanizada pré-Guerra Fria. Se o que é dito nesses filmes é dito pela necessidade do momento de histórias do tipo, uma necessidade quase política do liberalismo resistente dos EUA de resgatar a identidade autônoma e uma necessidade ideológica em um mundo de crescente globalização em resgatar discursos nacionais — que, como aponta Hall, se tornariam cada vez mais globalizados e, em resposta, cada vez mais obsessivos em uma resistência da globalização —, então uma releitura pessoal, ou de um microgrupo historicamente constituído, como já foi argumentado por se considerar a concepção de identidade do pós-modernismo, resgataria esses filmes nos anos 1990 por um semelhante sentimento nostálgico? Sim e não. O início dos anos 1990 tem um formato político e ideológico quase tão propício a essa necessidade nostálgica pelo indivíduo autônomo e pela cultura nacional quanto o momento em que foram lançados Música, Maestro! e Tempo de Melodia. O neoliberalismo e o patriotismo acabaram de passar por uma era de força no ocidente com o governo de Ronald Reagan, nos EUA, e de Margaret Thatcher na Inglaterra. O neoliberalismo, particularmente, vinha ganhando força no Brasil nesse mesmo momento e também o patriotismo. Ora, o que seria o movimento dos Caras-Pintadas se não extremamente patriótico (não só pelas cores verde e amarela, mas pelo próprio nome dado ao movimento, remetendo à cultura indígena com uma pretensão digna da nostalgia pós-moderna). Além disso, a dissipação da URSS gerou no Leste Europeu uma série de conflitos baseados nas identidades étnicas, naquele momento já uma ilusão. Mas talvez seja muito cinismo acadêmico justificar esse gosto de um microgrupo pelas circunstâncias políticas do momento histórico em que se situa. Afinal, há que se levar em consideração que éramos então crianças, não tínhamos portanto consciência da situação política mundial, e que aquele momento, mais precisamente em 1989, com A Pequena Sereia, marcou o mercado cinematográfico infantil pelo que é chamado jornalisticamente de Renascimento Disney, em que os estúdios teriam retomado sua rara qualidade artística, ausente desde a morte de seu fundador, conquistando até a posição de ter a primeira animação indicada ao Oscar de Melhor Filme, A Bela e a Fera (Gary Trousdale e Kirk Wise, 1992). Como contra-argumentação, resgato a teoria Freud-Lacaniana de que a criança não se desenvolve a partir de si mesma, e sim como um espelho de suas relações sociais. Ou seja, se o contexto político da época faz parte da identidade de pessoas que tem consciência dele, uma criança desse contexto refletiria as identidades nostálgicas que a cercam. E, apesar de que é possível aceitar o Renascimento Disney como algo que ocorreu naquele momento por motivos não historicamente relevantes, devemos levar em conta a temática e ambientação dos filmes Disney desse momento. Das sete animações musicais que geralmente são referidas como parte do Renascimento, seis são discursos estrangeiros impostos sobre comunidades nacionais imaginadas: a França de A Bela e a Fera e O Corcunda de Notre-Dame; o Oriente Médio inteiro foi compactado na fictícia Agrabah em Aladdin; a África em O Rei Leão; a comunidade nativa-americana em Pocahontas; a Grécia em Hércules; e a China em Mulan. Cinco deles são fantasias com fortes traços de uma identidade local globalmente imaginada, e quatro deles são ambientados em um passado não determinado. Trago de volta Hall: “Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de estilos, lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e pelos sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as identidades se tornam desvinculadas — desalojadas — de tempos, lugares, histórias e tradições específicos e parecem ‘flutuar livremente’. Somos confrontados por uma gama de diferentes identidades (cada qual nos fazendo apelos, ou melhor, fazendo apelos a diferentes partes de nós), dentre as quais parece possível fazer uma escolha. Foi a difusão do consumismo, seja como realidade, seja como sonho, que contribuiu para esse efeito de ‘supermercado cultural’. No interior do discurso do consumismo global, as diferenças e as distinções culturais, que até então definiam a identidade, ficam reduzidas a uma espécie de língua franca internacional ou de moeda global, em termos das quais todas as tradições específicas e todas as diferentes identidades podem ser traduzidas. Este fenômeno é conhecido como ‘homogeneização cultural’” (HALL,1992). Esse ímpeto nostálgico de um momento histórico pode justificar o gosto, mas não tanto o retorno a ele. Para isso, entra em questão Linda Hutcheon. Além de acusar Jameson de ser ele mesmo nostálgico por um mundo pré-moderno, Hutcheon levanta outra questão crucial quanto ao gosto pela nostalgia: já que esta não é apenas o desejo por um passado de sociedades mais simples de valores mais puros, como também é uma manifestação da insatisfação com a modernidade atual, será que a cultura pós-moderna não abarca esses dois sentimentos ao mesmo tempo? Seria a cultura pós-moderna, ao mesmo tempo, nostálgica e irônica? Vamos voltar aos filmes da Disney. Os musicais dos anos 1990 são objetos bem interessantes por conta própria, pois em sua maioria casam nostalgia e uma atitude de ironia com o mundo pós-moderno em que foram produzidos. Temos as várias referências feitas pelo Gênio da Lâmpada em Aladdin; as gárgulas de O Corcunda de Notre-Dame e o segmento de Zero to Hero em Hércules (o próprio uso de música gospel americana para narrar uma história da mitologia grega já vale o lugar do filme aqui). Mas voltemos a Pecos Bill, All the Cats Join In e outros de Música, Maestro! e Tempo de Melodia. Porque o objetivo não é expor a ironia do próprio objeto, e sim a ironia da ascepção que se faz dele. Mas como dividir objeto em nostálgico e ascepção em irônica se, de acordo com o Hutcheon, a cultura pós-moderna traz as duas coisas como uma só? Não é bem assim. Hutcheon apresenta Susan Stewart como um modo de separar as coisas. Para Stewart, a irônia é a perda da inocência, e não poderia, então, ter o mesmo ímpeto pela recriação de uma utopia que tem a nostalgia. Considerações finais Mesmo que de maneiras diferentes, uma de forma mais nacionalista e outra de maneira mais crítica e irônica, tanto The Legend of Johnny Appleseed e Pecos Bill quanto os filmes dos anos 1990 apresentam o sentimento nostálgico por um mundo de valores mais simples, em que o homem americano tinha a autonomia para ser um empreendedor (um pioneer, ainda por cima, um grupo famoso pela sua contribuição no extermínio dos povos indígenas) ou em que as outras culturas eram mais facilmente dominadas. Como afirmou Jameson, uma lição de História é a melhor cura para a nostalgia. Assim, imagens que povoam a infância permanecem na juventude, mas ganham um sentido de estranheza. Trago anexo a este ensaio algumas dessas imagens, talvez chocantes para um olhar afastado e crítico hoje, mas que já cumpriram sua função nostálgica e exerceram seu papel no discurso nacional. Assim, tanto nostalgia quanto ironia dependem mais do olhar do sujeito que do objeto em si, como coloca Hutcheon: “Isso pode ser em parte porque ironia e nostalgia não são qualidades de objetos, são respostas de sujeitos — sujeitos ativos, emocionalmente e intelectualmente engajados. A ironização da nostalgia, no próprio ato da sua invocação, pode ser uma maneira que o pós-moderno tem de tomar responsabilidade por tais respostas ao criar uma pequena parte da distância necessária para o pensamento reflexivo sobre o presente tanto quanto sobre o passado. (HUTCHEON)”   [caption id="attachment_1145" align="aligncenter" width="867"]Hércules (1997) Hércules (1997)[/caption]