Caricaturas de um mundo estranho

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Leon Niemczyk e Zygmunt Malanowicz em A Faca na Água

Pode ser uma leitura sua (A Faca na ÁguaDois Homens e um Guarda-roupaA Dança dos Vampiro) ou a visão cinematográfica de leituras alheias (O Bebê de RosemaryTessOliver TwistDeus da Carnificina), de qualquer forma o cinema de Roman Polanski é um retrato caricaturesco da sociedade e das relações sociais. É um ímpeto compreensível, principalmente considerando a sua antítese estética e temática, o Realismo Socialista hegemônico na União Soviética.
O clamor por grandes feitos humanos coletivos e individuais do Realismo Socialista é ridicularizado por Polanski através de personagens falhos, estranhos e bizarros. Poderiam ser simplesmente humanos, a humanidade como contraponto do cinema de grandes eventos épicos foi utilizada por todo o tipo de movimento de cinema independente dos anos 1960 e 1970, da nouvelle vague francesa e aos easy ridersamericanos. Mas Polanski não estaria satisfeito com a humanidade. Seus personagens dão um passo além dela, são caricaturas da humanidade, exageros, manifestações de uma tragicomédia fantástica.
Como disse o protagonista de Laranja Mecânica, o psicopático Alex DeLarge, é engraçado como as cores do mundo real parecem ainda mais reais quanto vistas na tela. O quadro que Polanski pinta do mundo real é vivo e assusta pela realidade de sua estranheza. Quando vi pela primeira vez Deus da Carnificina o seu surrealismo me incomodou um pouco e repeti o que já tinham dito alguns críticos da peça original, que é exagerado demais, que ninguém se comporta assim, não no mundo real. Escrevi aqui:
“A primeira parte do filme, com a camada de aparências e alfinetadas, traz bons momentos do texto e dos atores, todos correspondendo à falsidade e a cautela com a qual nós podemos nos identificar. O que me soou surreal no filme foi a facilidade com a qual essa camada se quebrou. Foi muito fácil para os personagens (e para o roteiro) deixar as aparências de lado e perderem o controle. A gritaria e as facadas verbais foram tão repentinas que se tornaram absurdas, em certo ponto eu pude até mesmo relacionar com um episódio qualquer de Desperate Housewives.”
Talvez eu não tivesse visto as coisas dessa forma se eu soubesse no momento que o mundo de Polanski não é o mundo real, nem nunca pareceu ter a intenção de ser. Cômico e fantástico, com uma magia por vezes mais explícita (O Último PortalO Bebê de Rosemary) e por vezes mais sutil.

Francesca Annis e Jon Finch em Macbeth

Polanski compartilha sua visão do mundo em que vive com alguns autores que ele não se acanha em citar. O que foi William Shakespeare se não outro caricaturador tragicômico do seu momento social. O Iluminismo se incomodava com Shakespeare. O déspota esclarecido da Prússia, Frederico, o Grande, expressa sua repulsa pela mistura que o dramaturgo faz ao tornar os bobos reis, e os reis, bobos.
“Olhem para os carregadores e coveiros que aparecem no palco e fazem discursos bem dignos deles; depois deles entram reis e rainhas. De que modo pode esta mixórdia de humildade e grandiosidade, de bufonaria e tragédia, ser comovente e agradável?”
Ou Charles Dickens e sua amorosa ridicularização da Inglaterra vitoriana. Interessante que tanto Macbeth como Oliver Twist não parecem ser as obras mais polanskianas do repertório desses autores. Por que não a tragicômica Rei Lear? Ou o mágico Conto de Natal? Não sei. Mas Polanski encontrou a si mesmo muito bem nessas duas histórias. Macbeth e sua Lady, para a nossa surpresa, são personagens tão polanskianos quanto os casal de A Faca na Água. O mesmo vale para o olhar cômico de arrogância senil de Fagin e dos donos do orfanato emOliver Twist, uma visão impiedosa da terceira idade que Polanski conserva desdeO Bebê de Rosemary e O Inquilino e não parece disposto a abrir mão enquanto ele mesmo se aproxima dela.
O quadro pintado por Polanski pode ser claustrofóbico ou em estranha liberdade. Acho que esse é um contraste melhor expresso ao se comparar o curta-metragemDois Homens e um Guarda-roupa ao filme A Faca na Água. Alexandre Tylski sugere no seu texto Os Restos do Pós-guerra a possibilidade de os protagonistas de Dois Homens terem nascido no mar da praia para cumprir a estranha sina de transportar um guarda-roupa. Eles se envolvem com esse mundo novo em confusão e estranheza. Assim como os personagens dos filmes de investigação de Polanski (Busca FrenéticaO Último Portal), são viajantes perdidos e sem um rumo certo, ainda que com objetivos claros.
O caminho oposto polanskiano foi traçado já por A Faca na Água, com personagens que nascem na terra e vão ao mar, mais especificamente a um pequeno barco. Nesses casos, que são os da famosa Trilogia do Apartamento (Repulsa ao SexoO InquilinoO Bebê de Rosemary), o estudo cai sobre a clausura, os seus motivos muitas vezes desconhecidos e as suas consequências trágicas em personagens claustrofóbicos. As quatro paredes destroem Rosemary e tira a razão dos pais em conflito de Deus da Carnificina.
E a claustrofobia gera confrontos de forte e assustadora violência psicológica. Violência que pode ser opressora, como estupro de Rosemary, ou uma autoinfligida como forma de clamar, de uma vez por todas, liberdade (Repulsa ao SexoO Inquilino). A sexualidade, dentro dos apartamentos, é nojenta, estranha e repulsiva. Fora deles, ela é exalada e extremamente convidativa. Isso é, para mim, sugerido pelo próprio papel de Emmanuelle Seigner em relação aos dois investigadores que acompanha. Culminando em uma das cenas mais literalmente quentes da filmografia polanskiana, em que Seigner e Johnny Depp transam no quintal de um castelo medieval em chamas.
Com seus diversos caminhos temáticos e escolhas narrativas, o cinema de Polanski mantem constante um fascínio diante do mundo e das questões que costumam perturbar as relações humanas. Polanski confronta essas questões com o humor que acha devido a elas. É um cinema de caricaturas, da magia que parte de uma filmografia única.

Emmanuelle Seigner em O Último Portal