Casa Grande

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O Janela Internacional de Cinema do Recife deste ano apresenta, meio perdida na sua programação, um trilogia de lamento meritocrático contra a meritocracia. Casa Grande (Fellipe Barbosa, 2014), Obra (Gregorio Graziosi, 2014) e Prometo um Dia Deixar Essa Cidade (Daniel Aragão, 2014) dizem muito sobre muitas questões do atual cinema brasileiro e externas a ele: a classe média “crítica”, acomodação, a estética do bom filme e a estética do mau filme.

Queridinho do Festival do Rioe, segundo muitos, seu vencedor moral, Casa Grande é uma narrativa coming of ageclássica com toques de mais dura ironia e humor negro. O filme se divide em duas maneiras de representação de classe: um estudo mais aproximado e bem pessoal de seu protagonista, um estudante do São Bento, escola de elite só para garotos do Rio de Janeiro, e a acidez sarcástica do conjunto de vícios e hipocrisias dos adultos dessa mesma família. Essas duas maneiras caminham juntas na estrutura de humor e drama do filme, o que pode ser um pouco confuso quanto a intenções, não que elas importem. As interações do bom moço com consciência de classe com a família acaba por humanizá-la, ao mesmo tempo que ele, como parte do conjunto familiar, muitas vezes é transformado em caricatura, o que não deve ser um problema. O filme é genuinamente engraçado e sombrio. É a sua trajetória de personagem que me incomoda.

Do erro à redenção, a leitura crítica do filme ao seu herói é bem mais leve que ao seu contexto. A sua relação de poder com a empregada da casa nunca é percebida pelo filme como tão problemática quanto a de seus pais, mesmo que seja. Pelo contrário, ele é o único afeto torto respeitado. De certo modo, Casa Grande parece um longo segmento de Doméstica (Gabriel Mascaro, 2013), Barbosa traz um discurso de autoindulgência bem próximo ao dos meninos selecionados por Mascaro.

Como jornada de descoberta da juventude de classe média, Casa Grande também está milhas de distância da delicadeza e força de Eles Voltam (Marcelo Lordello, 2014). São duas narrativas que concedem à classe média e média-alta um olhar piedoso, mas seu final guarda a grande diferença política entre elas. A personagem de Eles Voltam não só é transformada pela situação inesperada por que passou como se torna despretensiosamente engajada no questionamento à própria classe para a própria classe. O garoto de Casa Grande transforma a si mesmo, é redimido, fim. Um coloca a possibilidade de mudança contínua; o outro parece satisfeito com a acomodação “crítica”. O que me leva de volta à trilogia contra a meritocracia.

A ironia desses filmes está anterior sequer à projeção deles. Que o mito da meritocracia é prejudicial à sociedade, todos concordam. Mas quem está disposto a discutir o papel que ela cumpre dentro da cadeia de produção cinematográfica brasileira, a força de “nomes” para aprovação de projetos, a política elitista de festivais — que nunca foram ou serão exclusividade brasileira —, etc.? Que bom que Ardiley Queirós consiga fazer filmes (quase anárquicos, é justo dizer), mas por que ele ainda é exceção? Nesse sentido, eu acho crucial que Daniel Aragão exista. O diretor, na suas escolhas estéticas exageradas, artificiais e absurdas, expõe toda a hipocrisia da hegemonia crítica que cerca o bom cinema nacional. Ontem disseram que é ofensivo Aragão receber dinheiro público pra fazer o filme que fez. Por quê? Ele é só mais um grande nome no meio dos grandes nomes. Mas sua estranheza, que muitos entendem como pobreza estética, desestabiliza o que antes era uma ordem óbvia de meritocracia. É curiosíssimo ainda que, dentro do filme, ele apresente também a solução mais radical, violenta e incomodada para os problemas de classe que coloca.


É importante que festivais existam para colocar esses filmes lado a lado e expôr questões que realmente perturbem o bom cinema estabelecido. Seria mais interessante ainda se o debate não encontrasse uma fuga constante para a unanimidade do bem e do mal.