"Cinquenta Tons de Cinza": a representação de uma fantasia

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netloid_grandparents-react-to-fifty-shades-of-grey-trailer Este é o segundo texto que escrevo sobre Cinquenta Tons de Cinza. Ontem, escrevi o que agora não passa de um rascunho descartado contra uma crítica ao filme que chamei conservadora. Várias conversas com amigos que tomam parte dessa crítica esclareceram questões que agora, pra mim, justifica-a e a faz necessária. Quem lê aqui já deve ter se deparado com vários desses argumentos, eles têm circulado Cinquenta Tons de Cinza desde os livros. Vou repeti-los aqui porque acho necessário que passemos por eles. É importante que problemas relacionados ao livro Cinquenta Tons de Cinza sejam, a partir de determinado momento do texto, colocados de lado. Embora a crítica que eu defenda esteja embasada (e corretamente) no livro, a minha defesa só pode ser dirigida ao filme e ao filme apenas. Sobre a trama, vou me limitar a do filme, que sei ter feito vários cortes ao livro. Anastasia é recém-formada em Literatura Inglesa e acabou de conhecer o sedutor, misterioso, milionário e muito atraente Christian Grey. Ele está claramente encantado pela moça, mas permanece distante por um motivo secreto que depois revela: ele só está disposto a se relacionar afetivamente com mulheres através de um jogo de submissão e dominação que envolve inclusive um contrato com os termos de acordo. Sou mínimo na sinopse porque receio impor à crítica militante ao filme pontos que a contradigam. Ela não pode ser contradita, diga-se, porque está muito bem suportada pela existência do livro e por questões que o filme também reproduz que vou mencionar depois. Mas o que for descrito do filme a partir daqui não deve ser usado para contradizer uma outra leitura do filme, apenas para proclamar a possibilidade de uma segunda leitura, em paralelo. Cinquenta Tons de Cinza é um filme centrado na personagem Anastasia. Como acontece com alguns personagens em alguns filmes. Ela é o centro daquele universo, tudo gira ao redor dela, do que ela quer e deseja e teme. Principalmente, o filme é uma fantasia dela. E a fantasia dela é Christian Grey. Por que? Porque ele é rico, atraente, misterioso e porque ele vai mudar o seu comportamento por ela. Christian Grey é a fantasia sexual e amorosa de Anastasia. Ele, no entanto, também tem uma fantasia: só gosta de se relacionar com mulheres numa relação de dominação e submissão muito dogmática. Desde o momento em que o relacionamento dele com Anastasia começa, ele quebra seus próprios dogmas. Anastasia, por outro lado, está curiosa ainda que incerta dos fetiches de Grey. Ela quer participar, mas não sabe ao certo até que ponto. Ela claramente se diverte com os presentes caros e com o mimo que inspira em Grey, mas continuadamente atrasa a assinatura de um contrato contendo as cláusulas da relação entre eles. Por que ela assinaria? A situação com o contrato não assinado tem alimentado muito mais a sua própria fantasia que a de Grey. A submissão parcial de Anastasia é parte da fantasia dela. Se aceitamos isso, aceitamos uma leitura do filme que o coloca tão simplesmente como a manifestação de uma fantasia de uma personagem, como um conto erótico escrito em primeira pessoa. Sobre se a perspectiva do filme como a fantasia de uma personagem o compreende por inteiro ou não, temos toda a construção narrativa do seu desfecho, de como ele escolhe se encerrar. É importante que se reitere que em nenhum momento do filme a experiência se torna dolorosa para Anastasia, ela está sempre abrigada pelo prazer da descoberta sexual. Quando ele interfere na sua vida pessoal, ela fica entusiasmada pelo efeito que tem nele, por como consegue contornar as regras e fazer as suas próprias, o seu próprio jogo de domínio e submissão, que concede ao de Christian no que a proporciona tesão, mas que na maioria das vezes foge completamente do dele. Isso é crucial, ele realiza a fantasia dela. Mas ela não realiza a dele. Na verdade, ela é uma grande contradição do que ele quer. A fantasia de Christian se materializa em um contrato que nunca é assinado. Quando ela se sente machucada, expressa que não pode mais ficar com ele. E aí o filme acaba. Considero esse final um momento de afirmação muito importante do papel da personagem no relacionamento. Ela mostra que pode sair quando quiser e sai, deixando uma exigência implícita de mudança. Ainda, é parte da fantasia dessa personagem. É importante não confundir a fantasia de Anastasia com a de um grupo que se reconhece como BDSM. A personagem nunca adere a uma fantasia de grupo, já preestabelecida. Pelo contrário, ela molda a sua própria fantasia ao redor dessa outra, a dela é até mais conservadora. Só que o filme não é inocente e não pode estar livre da outra leitura. Aliás, ele não se permite livre dessa outra leitura quando faz concessões muito conscientes a críticas antigas, mas não a todas elas, deixando para trás um ranço de conservadorismo explícito que se manifesta em dois principais pontos. 1- O filme justifica os fetiches do personagem num trauma de infância. 2- O contrato, que embora nunca seja assinado deixa passar com muita naturalidade e aceitação algumas cláusulas absurdas, como uma que define como papel do dominador escolher o ginecologista da submissa e outras que exigem particularidades à alimentação dela e a alguns de seus hábitos individuais. O filme poderia escapar disso se não fosse tão didático em vários outros pontos (por exemplo, eles sempre mostram os personagens abrindo pacotes de camisinha). Isso não pode ser relevável ou perdoável. Mas não afeta o entendimento do filme como um entendimento da fantasia dela. Afinal, não a contradiz em nenhum ponto. O que eu tenho praticamente mendigado aqui, ao desenhar a trama, é quase um clichê dos sonhos do crítico, a cumplicidade com a minha leitura. Não sei se ela funciona tão bem textualmente quanto em uma mesa de bar. Mas fica a tentativa. Só não deixe, por favor, de considerar o texto como um pedaço de uma conversa. Gosto de Cinquenta Tons de Cinza principalmente porque não esperava obter dele conversa alguma. Fui surpreendido.