De Canção em Canção, existencialismo fora de ritmo

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por Cesar Castanha O melhor filme sobre um festival de música, ou a utilizar um como cenário, que eu já vi, Nashville (dir. Robert Altman, 1975). Observando a relação de um extenso grupo de personagens com a música country, Altman propõe um olhar não só para a cultura afetiva de uma cidade, mas também para a indústria da música local e seu sistema de manutenção de poder e capital. Quando o filme volta sua atenção para os números musicais, todas essas questões estão presentes na cena, mesmo que a cena consista apenas de um homem, banco e violão. Lembrei desse grande filme enquanto assistia De canção em canção (dir. Terrence Malick, 2017).  Isso especialmente nos poucos momentos em que o cenário musical de Austin, no Texas, surgia em um filme que se declara, desde o título, interessar-se por ele. Não quero dizer que eu esperava que De canção em canção se comparasse a um dos melhores filmes americanos, um dos vários ápices criativos do cinema dos anos 1970, como é Nashville. Mas eu certamente não esperava que a cena musical de Austin fosse no filme reduzida a um conjunto de estereótipos sobre a cultura e a indústria musical — e que a música, e todo seu potencial de construção estética no cinema, fosse apresentada de forma tão descartável. Terrence Malick, então, um diretor que é claramente tão motivado pelas experiências sensíveis de seus personagens — estes que rodopiam em paisagens desertas sinalizando sua particular sintonia com as coisas do mundo —, surpreendentemente ignora a música como parte da experiência estética de uma cena musical. No lugar disso, o diretor repete as mesmas imagens de solidão narcisista dos seus últimos quatro filmes: personagens contemporâneos que vagam sem rumo contemplando seu próprio existencialismo. É uma contradição intrigante essa dos ególatras que dançam no ritmo do mundo no cinema recente de Malick. Diferentemente de seus dois primeiros filmes, as obras-primas Terra de ninguém (1973) e Cinzas no paraíso (1978) — em que a situação do personagem no espaço era sempre problematizada, reconhecida em seu contexto político — a partir de Além da linha vermelha (1998) seus personagens encontram na natureza o gozo da mera existência. De canção em canção acentua essa ideia de um prazer por existir usando alguns artifícios, como a câmera em constante movimento, planos em grande-agular e viagens espontâneas dos personagens por outros espaços. Saber-se vivo é, para o filme, motivo de constante excitação, uma experiência de permanente entrega ao sublime encanto do contato com as coisas do mundo. O problema cresce quando os quatro protagonistas de De canção em canção, embora apontados pelo filme como sujeitos que vêm de lugares completamente diferentes e se relacionam uns com os outros de modo totalmente diversos, terminam por experimentar o mundo pelo mesmo caminho de deslumbramento existencial. Isso resulta em um lamentável subaproveitamento de alguns personagens e atuações que poderiam ter ido por um caminho mais interessante, como é o caso da de Natalie Portman, que faz um trabalho respeitável, mas apagado por um desinteresse do filme em desenvolver seus personagens de forma mais cuidadosa. Não entendo também porque essa relação de sintonia com o mundo e atordoamento nele tem que ser mimetizada pela fotografia como se esta devesse traduzir em sua fluidez caricata cada aspecto os sentimentos dos personagens, já expressados verborragicamente por eles mesmos a partir de um conjunto de narrações em off óbvias e insistentes. Se Malick parece satirizar seu próprio trabalho nos últimos filmes, não pode se dizer menos do diretor de fotografia Emmanuel Lubezki. Certamente, uma coisa que eu não esperaria de um filme de Malick fotografado por Lubezki é que ele fosse visualmente tão desanimador quanto este é. De canção em canção carrega toda a fragilidade do Malick recente e nada do charme usual de seu cinema. Num momento em que o cinema contemporâneo se espalha no experimento com a linguagem cinematográfica, na troca de referências e busca por imagens afetivas, o cinema de Malick parece ficar para trás pescando pelas mesmas representações do existencialismo. Para o próximo filme, espero que descubra ao menos qualquer outra coisa ao levantar a rede.

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